31 de maio de 2006

Fora do mapa

Recebi ontem o recém-parido "Almanaque anos 70", na Ana Maria Bahiana, uma bela publicação da Ediouro. Sou de 61, portanto, vivi minha adolescência nos anos 70. Esse é o "meu" almanaque, certo? Errado. Melhor: nele eu descobri que, adolescente suburbano (Piedade e Méier), existo na memória que se forja oficial apenas como um ser midiático. Novelas (Casarão, Gabriela, Estúpido Cupido), programas de TV (Chico City, Satiricom, Globo Cor Especial), jingles, filmes (Bergman, Woody Allen, Kubrick - Barry Lyndon!), shows, Chico, Beatles, Caetano, e, vá lá, peças (Trate-me leão, claro). Havia também as copas do mundo, os crimes nos jornais (Doca Street, Van-Lou, Cláudia Lessin). Pelo Almanaque descubro que os meus anos 70 reconhecidos como tal foram aqueles que pude compartilhar pelos meios de comunicação ("de massa", como então se dizia). No mais, eu não existi. Não tomei o sorvete do Morais, não comi o sanduíche do Gordon, não freqüentei o píer, não comprei nada na galeria River (River, para mim, era nome de um clube em Piedade, o Zico jogou futebol de salão por lá; criança, fui levado a alguns de seus bailes de carnaval e, bem depois, no fim dos setenta, cheguei a aparecer, vez ou outra, nas discotecas que rolavam nas noites de domingo). Folheio o almanaque, e nada sobre o River. Nada também sobre os blocos que passavam pela avenida Suburbana, sobre os filmes de sacanagem que a gente ia ver no Ridan, em Pilares (que depois virou Sambola). E o Bruni Piedade? Boas poltronas, cortina de veludo que protegia a tela - este virou igreja, mas isso não é contado em nenhum almanaque. Pelo que vi, não há nenhuma linha sobre o Mackenzie, o grande clube do Méier - vi um show da Gal Costa lá, na quadra de esportes. O Johnnhy Mathis também cantou ali, Dias da Cruz, quase esquina da Pedro de Carvalho (também se apresentou no Tem-Tudo de Madureira). Tudo isso por lá - lá que não figura no mapa, como diz o Chico (ele notou que, em boa parte dos mapas do Rio vendidos por aí, os subúrbios sequer são mostrados). Meus anos 70 também ficaram fora do mapa.

23 de maio de 2006

Bandeiradas

"Normalmente é no banco de trás. O banco é rebatível, sabe? Fica feito uma cama. Mas, de vez em quando, na pressa, é aqui na frente mesmo. Nesse banco aí que você tá sentado."
"Ahã", devo ter feito, enquanto conferia de maneira exagerada e caricatural o estado do assento, do banco do carona. "Aqui tá tudo limpinho, né, companheiro?", brinquei: "Pelo visto tá tudo seco...".
O sujeito pareceu gostar da brincadeira. Ficou mais à vontade para prosseguir no relato de suas aventuras sexuais no táxi.
"Ali atrás - fez, com uma ligeira virada de rosto, uma referência à mala do carro - tenho tudo que precisa. Lençol, travesseiro, camisinha..."
Mas, e a violência, os assaltos? Não seria complicado namorar no carro hoje em dia? Onde é que ele parava o táxi?
Havia alguns locais. Mas o preferido era um depósito de material de construção, lá perto de sua casa, em Nova Iguaçu. Estacionava bem atrás de um monte de areia.
As, digamos, passageiras eram fixas?
Variava, eu deveria saber. A namorada mesmo não gostava tanto dos malabarismos no táxi. Cliente de carteirinha mesmo era a filha de uma vizinha, 16 aninhos de pura sacanagem. Mal podia ver o táxi passar pela rua.
"Só as duas?"
Ele fez um ar de cansaço, de quem anda rodando mais do que o razoável. Aquele jeito de quem diz isso-aqui-ainda-acaba-comigo.
"Que nada. Parece até que elas adivinham, que fazem sinal de propósito. Fingem que querem o táxi, mas ficam mesmo de olho no kit que tem lá na mala."

22 de maio de 2006

Naicetomitiu

fernando molica



"O que quer dizer 'naicetomitiu'?". A corrida no táxi estava quase acabando, mas o motorista insistia em tentar descobrir o que o gringo que me antecedera em seu carro dissera para ele. Naicetomitiu.
"Ele, pelo visto, gostou do seu trabalho. 'Nice to meet you' é uma forma de agradecimento, uma maneira de dizer que ficou feliz em conhecê-lo."
Ah, bom. Pensou que fosse alguma sacanagem, língua de gringo, sabe como é que é.
Fica tranqüilo, foi um elogio.
"Conheço algumas palavras em inglês. Thank you, good morning. Mas nunca tinha ouvido o naicetomitiu. Quer dizer que ele gostou do meu serviço?" - o taxista demonstrava não confiar muito no agradecimento do gringo nem na minha capacidade de traduzi-lo (neste ponto, sua dúvida fazia sentido).
"Já falei, amigo - disse enquanto pagava a corrida. - Foi um elogio. Você é um bom motorista."
"Tá bom, OK. Mas...(eu já tinha colocado meio corpo pra fora do táxi, mas havia uma outra questão, urgente, pelo visto, a ser resolvida)...o que quer dizer ropetosiuagueim?"

21 de maio de 2006

Inútil paisagem

13h26, domingo de sol, outono no Rio, plantão. Na saída do almoço alguém ouvia o barquinho vai, a tardinha cai. Caí rápido pra dentro da TV. São e salvo; o dia aqui só chega filtrado pelos monitores. Pra que tanto céu, meu Deus?