12 de setembro de 2006

Nós, os alemão

Preocupados que estamos com a violência que se expressa nas armas de fogo empunhadas pelos nossos, digamos, inimigos de classe - os bandidos que nos assaltam e ameaçam nossas vidas -, nos esquecemos de outro adversário, aquele que cultivamos em nossas casas, em nossas famílias, em nós mesmos. Somos, de um modo geral, na prática, defensores de uma cultura da morte, do desrespeito. Vivemos em uma sociedade que volta e meia protesta contra radares de controle de velocidade, que elege irresponsáveis que se candidatam vociferando contra uma suposta indústria das multas. Chegamos ao cúmulo de instituir nos túneis e auto-estradas, avisos que alertam que é hora de diminuir a velocidade porque estamos a nos aproximar do radar. Pois, como diriam aqueles nossos antepassados europeus (que devem rir muito dessa nossa prática).
Temos uma legislação que nos desobriga da submissão ao bafômetro; nos orgulhamos de poder dar aos nossos filhos carros cada vez mais potentes e, se possível, blindados – assim escaparão dos bandidos. Fingimos não ver que esses filhos, aos 15/16 anos, freqüentam lugares proibidos para menores de idade, locais onde quase todos consumirão bebidas alcóolicas - o dono da boate é um dos nossos, um cara legal. Mais ainda: nas festas de adolescentes é comum que seus pais patrocinem a distribuição das tais bebidas. Alguém aí já viu um garçom recusar bebida a um adolescente em uma dessas festas de debutantes?
Depois de uma tragédia como a da Lagoa, que machuca a todos, é fundamental respeitar a dor de quem perdeu seus filhos assim como é necessário tentar evitar outros acidentes como aquele. Falamos todos na importância de dar limites aos jovens, esses adoráveis rebeldes. Mas quem é que vai dar limites aos pais, a cada um de nós? Quem vai limitar o sujeito que pára o carro na calçada, que, no Rebouças, pisa no freio metros antes do radar, que sabe de cor todos os pontos em que há pardais na Linha Vermelha? Quem vai dizer para um pai de família que ele não deve ir de carro para o bar ou para o restaurante locais onde possivelmente irá encher a cara? Quem é que vai dar voz de prisão para o dono da boate que permite a entrada de menores e que a eles vende bebida alcóolica?
Alguns outros países já responderam a essas perguntas. O Estado cumpre as desagradáveis tarefas listadas aí em cima. É ele que adverte, multa, pune e prende. E não faz isso porque é chato, mau, desagradável, estraga-prazeres. Faz isso em nome da sociedade que o criou e o sustenta. Uma sociedade consciente da necessidade de um ente que, que forma impessoal, a preserve e a proteja. Proteja-a, às vezes, de si própria. Muitas vezes precisamos de quem nos proteja de nossos excessos e evite que prejudiquemos outras pessoas. Nem sempre somos tão corretos, tão racionais. Nem sempre fazemos o que escrevemos.
Por alguma razão que o Roberto Da Matta poderá tentar explicar, desenvolvemos uma relação curiosa com o Estado que, a todo dia, sustentamos com nossos impostos. Algo como: adverta, puna e prenda – os outros. Não admitimos ser fiscalizados, alertados, multados. “Vá prender bandidos!”- que guarda de trânsito já não ouviu esta frase? Aquele que não a ouviu deve ter recebido uma pergunta. Algo como: “Não dá pra resolvermos isso de outra forma?” O engraçado é que tendemos a classificar de corrupto apenas o policial que se vende, não o motorista que o compra. Como em outras relações, há aqui a figura do ativo e do passivo, ambos cúmplices, elementos essenciais para a realização de um determinado ato. Um depende do outro.
Angustiados com o inimigo externo, nos esquecemos do quanto somos cúmplices e promotores de um outro tipo de violência. Uma violência que, em determinados universos, deve matar e ferir muito mais do que aquela outra, banalizada pelos tiros de armas alheias. Ao longo de alguns séculos construímos uma sociedade violenta, excludente, e só sabemos culpar os feios, sujos e malvados, como no filme de Ettore Scola. Nos acostumamos tanto a desrespeitar o outro que acabamos criando condições ideais para o auto-extermínio. Ninguém - nem o Estado, nem a família - pode nos limitar, nos multar, nos punir. Fomos tão radicais na busca dessa impunidade que hoje não sabemos mais sequer proteger nossos filhos. Conquistamos o direito de nos matarmos e de dormirmos assustados com o ruído de cada freada que invade nossas noites.

3 de setembro de 2006

A grande cena

É uma daquelas cenas que valem o ingresso. Aquele raro momento em que o implícito vale mais que o explícito, que o escancarado. Lembra uma outra, igualmente delicada, de "Eles não usam black-tie" - em um determinado momento da crise gerada pelo movimento grevista, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam feijões na cozinha. Não há discurso, não há - ou quase não há - diálogos. Há apenas perplexidade, dúvida, angústia. Há, enfim, cinema, muito cinema. O melhor cinema daquele filme de Leon Hirzman. A cena de agora é de "Zuzu Angel", de Sérgio Rezende. Um bom e mesmo emocionante thriller, prejudicado, aqui e ali, por cenas em que há pouco cinema e um excesso de verborragia. Mas, enfim, a cena: logo depois do assassinato de seu filho, Zuzu Angel, incorporada por Patrícia Pillar, sobe uma ladeira em busca do pai de Carlos Lamarca, o líder guerrilheiro cujo endereço Stuart Angel se negara a revelar sob tortura. Recusa que lhe valera uma dose-extra de torturas e que lhe causaria a morte. Zuzu entra numa sapataria e encontra um velho - Nélson Dantas, brilhante - a trabalhar. Zuzu fala e fala: fala que seu filho morrera para proteger o filho daquele homem ali. Em nenhum momento cita o nome de Lamarca, o oficial do Exército que desertara para aderir à luta armada. O velho parece impassível, ouve o discurso daquela mulher enquanto continua a trabalhar. Trabalho que envolve alojar alguns pregos entre os lábios - uma técnica dos sapateiros para facilitar o seu ofício. Mãos e boca ocupadas, o velho ouve a cantilena daquela mulher. Parece não ouvir o que ela diz; melhor, parece ouvir mas não entender bem o que ela fala, parece ter uma certa postura olímpica, distante. Algo como quem é essa louca que vem me falar em filho quando eu também, de certa forma, perdi o meu, eu que nem sei onde ele está, ele que é um dos homens mais caçados do país? Dantas olha para a mulher, para o pé de sapato que conserta; martela o sapato, coloca e tira pregos nos lábios. Até que algo rouba a atenção daquela mulher. Ela que, até então, limitava-se a despejar seu rancor sobre o velho, percebe enfim o quanto de dor - calada, sufocada - havia naquele homem mudo. De seus lábios saía um filete de sangue, sangue que brotava de uma ferida causada pela pressão exercida pelos lábios sobre aqueles pregos. Cada palavra de Zuzu fora como uma martelada na alma, na boca do pai de Lamarca; pancadas cuja força enfim se revelava naquele filete de sangue. Uma dor que revela uma outra forma de tortura, uma dor cruel, sem sentido, que desnuda a impotência de quem a causa e de quem a sente. Uma dor bumerangue, pregos que agora atingem quem, até há pouco, despejava tantas e tantas dores. Uma dor não-óbvia, difícil de detectar e, principalmente, mostrar. Uma dor que só um grande filme - ou um grande livro, ou um grande quadro - pode revelar. "Zuzu Angel" não chega a ser um grande filme, mas abriga uma grande cena, digna do melhor cinema, de dois grandes atores, de sensíveis roteiristas e diretor. A cena que nos faz cúmplices daquelas tantas dores, dores que passam a doer também em todos nós.