31 de janeiro de 2008

Filhos eternos


Não é muito original dizer isso, mas não custa repetir que "O filho eterno", de Cristovão Tezza (Record), é um ótimo livro. E o melhor: conheço algumas pessoas que já o leram. Isso permite algo difícil nesses tempos: conversar, ainda que por e-mail, sobre um livro. Numa dessas conversas, um amigo me chamou a atenção para um dado interessante de "O filho eterno": no fundo, o personagem principal também busca o pai. No processo de rejeitação/aceitação do filho down, ele também se descobre filho, um filho igualmente eterno.
Essa observação permitiu - e a conversa foi seguindo - perceber o quanto o autor é hábil ao criar discretos paralelismos entre a história de seu filho e fatos de sua própria biografia. O filho tem uma deficiência que lhe causa óbvios problemas de adaptação ao mundo. Mas, ao refletir sobre o filho, o pai reconhece suas menos explícitas dificuldades. A humanização do personagem principal se dá de forma gradual. Algo só pode existir na medida em que ele também se descobre incapaz, inadaptado. A deficiência de um expõe a do outro. Uma leitura que nos ressalta o como, de alguma forma, somos todos meio (ou muito) incapazes e inadaptados. E é essa perspectiva que faz de "O filho eterno" um livro profundamente humano.

29 de janeiro de 2008

Bandeiradas

"Normalmente é no banco de trás. O banco é rebatível, sabe? Fica feito uma cama. Mas, de vez em quando, na pressa, é aqui na frente mesmo. Nesse banco aí que você tá sentado."
"Ahã", devo ter dito, enquanto conferia de maneira exagerada e caricatural o estado do assento, do banco do carona.
"Aqui tá tudo limpinho, né, companheiro?", brinquei: "Pelo visto tá tudo seco..."
O sujeito pareceu gostar da brincadeira. Ficou mais à vontade para prosseguir no relato de suas aventuras sexuais no táxi.
"Ali atrás - fez, com uma ligeira virada de rosto, uma referência à mala do carro - tenho tudo que precisa. Lençol, travesseiro, camisinha..."
Mas, e a violência, os assaltos? Não seria complicado namorar no carro hoje em dia? Onde é que ele parava o táxi? Havia alguns locais. Mas o preferido era um depósito de material de construção, lá perto de sua casa, em Nova Iguaçu. Estacionava bem atrás de um monte de areia.
As, digamos, passageiras eram fixas?
Variava, eu deveria saber. A namorada mesmo não gostava tanto dos malabarismos no táxi. Cliente de carteirinha mesmo era a filha de uma vizinha, 16 aninhos de pura sacanagem. Mal podia ver o táxi passar pela rua.
"Só as duas?"Ele fez um ar de cansaço, de quem anda rodando mais do que o razoável. Aquele jeito de quem diz isso-aqui-ainda-acaba-comigo.
"Que nada. Parece até que elas adivinham, que fazem sinal de propósito. Fingem que querem o táxi, mas ficam mesmo de olho no kit que tem lá na mala."

27 de janeiro de 2008

Naicetomitiu


"O que quer dizer 'naicetomitiu'?". O motorista do táxi queria descobrir o que o gringo dissera para ele. Naicetomitiu.
"Ele, pelo visto, gostou do seu trabalho. É uma forma de agradecimento, uma maneira de dizer que ficou feliz em conhecê-lo."
"Ah, bom."
Pensou que fosse alguma sacanagem, língua de gringo, sabe como é que é. Fica tranqüilo, foi um elogio.
"Conheço algumas palavras em inglês. Thank you, good morning. Mas nunca tinha ouvido o naicetomitiu. Quer dizer que ele gostou do meu serviço?"
O taxista demonstrava não confiar muito no agradecimento do gringo nem na minha capacidade de traduzir o que ele dissera (neste ponto, sua dúvida fazia algum sentido).
"Já falei, amigo - disse enquanto pagava a corrida. - Foi um elogio. Você é um bom motorista."
"Tá bom, OK. Mas... (eu já tinha colocado meio corpo pra fora do táxi, mas havia uma outra questão, urgente, pelo visto, a ser resolvida) ...o que quer dizer rropetosiuagueim?"

25 de janeiro de 2008

Eu e o meme, o meme e eu

Recebi este meme do Marcelo Moutinho, que o recebera da Adriana Lisboa. Não sei muito bem o que é um meme, pelo jeito, é um questionário com nome diferente. Pior é que nem sei como passar esse trem adiante. Mas, vamos lá, vou tentar responder às perguntas.

1. O que você estava fazendo em 1978 (há 30 anos)?
Participava de um cineclube, estudava para o vestibular, era aluno do Colégio Metropolitano, no Méier - queria ser jornalista. Gostava muito das aulas de literatura, o professor era o Ivan Cavalcanti Proença. Torcia para o Botafogo quebrar o jejum de títulos.

2. E em 1983, há 25?
Trabalhava na sucursal Rio do "Estadão", onde estagiara por um ano. Fui contratado, se não me engano, em março. Em dezembro, aluguei um apartamento em Botafogo, na rua Sorocaba, e fui morar sozinho. Não exatamente sozinho: o apartamento, térreo, era visitado por milhares de baratas, o que deve ter contribuído para uma certa solidão - mulheres e suas implicâncias bobas. Torcia para o Botafogo quebrar o jejum de títulos.

3. O que você estava fazendo em 1988?
Era repórter da sucursal Rio da "Folha" - ou chefe de reportagem, sei lá. No apartamento de Vila Isabel, trocava fraldas de meu filho nascido no ano anterior, cantava sambas-enredos para ele dormir ("Os sertões" era o favorito, o moleque caia no sono ao som de "Os jagunços lutaram, até o final/Defendendo Canudos naquela guerra fatal"). Babava diante do meu primeiro filho; com auxílio de amigos, cuidava para fazer com que seu coração adotasse a estrela solitária que me conduz. Por falar nisso: torcia para o Botafogo quebrar o jejum de títulos.

4. E em 1993?
Morava na Tijuca, cuidava de meus dois filhos alvinegros (o mais novo tinha dois anos, também ouvia sambas-enredos para dormir enquanto eu babava diante dele). Era repórter especial da "Folha". Comemorava os diversos títulos do Botafogo.

5. O que estava fazendo há 10 anos?
Já trabalhava na Globo - se não me engano, tinha acabado de migrar para a redação do Fantástico, onde ficaria por oito anos. O primeiro casamento fora pro espaço, tinha voltado a morar sozinho - na Tijuca, Leblon e no Humaitá.

6. E há cinco?
Terminava meu segundo livro, estava no meio do segundo casamento, torcia para o Botafogo sair da segunda divisão.

24 de janeiro de 2008

Páginas amarelas (5) Anistia

Conversei ontem com um colega de redação sobre as fotos que mostram PMs saqueando um caminhão de entrega de cerveja. Ele fez um diagnóstico e uma proposta: do jeito que está a polícia do Rio, só há um jeito, começar tudo de novo. Sugeriu uma anistia para policiais infratores e um recomeço, que teria que ser acompanhado de uma reestruturação da PM - a criação de um outro patamar salarial seria mais do que recomendável. Na conversa, surgiu um consenso meio óbvio: a criminalidade só chegou ao atual estágio graças à colaboração e conivência de setores policiais. É o que explica a quantidade de armas e de munição à disposição dos bandidos. Uma anistia ampla - e que excluísse os casos de crimes contra a vida - talvez fosse interessante.

Lembrei de um texto que escrevi em 1996 e que foi publicado na "Folha". Hoje talvez ele pareça meio inocente, sei lá. Mas, diante da complexidade do problema, não custa - até como exercício - pensarmos em soluções mais originais . O investimento no aumento da repressão e no uso da violência policial tem sido recorrente nos últimos 20 e poucos anos. O resultado, todos conhecemos. Na época, falei em anistia para bandidos, talvez seja o caso de - como quer meu amigo - incluir os fardados no pacote.

Pacto da Rocinha

Folha de S.Paulo, 13/01/1996

Fernando Molica

RIO DE JANEIRO _ Mesmo os defensores da solução policial para o problema da violência admitem que a raiz da situação de conflito está plantada no solo das carências e desigualdades sociais.
Já há algum tempo, estudiosos da situação carioca detectaram que, em muitas favelas, o poder formal perdeu a batalha para outro _um poder real, de fato, exercido pelo tráfico de drogas e construído com base no medo e em uma espécie de senso difuso que identifica no Estado uma espécie de inimigo, uma entidade que só aparece por ali metido em uniforme de polícia.
Há alguns anos falava-se no Brasil em um pacto social, um acordo inspirado no Pacto de Moncloa (o que viabilizou a transição democrática na Espanha) e que permitiria à sociedade administrar as liberdades recém-conquistadas.
Bem ou mal, o Brasil institucionalizou-se. Esse processo deixou de fora, porém, milhões de pessoas. Muitas dessas, como os sem-terra, continuam dispostos a participar da brincadeira: para isso chegam a arranhar a legalidade, mas seu objetivo final é o de integração na sociedade.
Outros, como os jovens que vivem armados em favelas cariocas, já perderam essa expectativa de integração: seu horizonte institucional aponta apenas para a cadeia.
A reversão desse quadro exigiria atitudes mais corajosas. O pressuposto seria o Estado e a sociedade admitirem sua responsabilidade na criação das condições que permitiram a expansão da miséria e da violência.
Dessa constatação e da vontade de mudança surgiria uma espécie de ''Pacto da Rocinha'' _isso para citar uma das mais célebres favelas cariocas. Seria um acordo pelo qual o Estado, em seus diferentes níveis, se comprometeria a resgatar a tal dívida social, expressa hoje na falta de empregos, saneamento básico, escolas, transporte e atendimento médico.
Seria também necessário desarmar os grupos marginais. Para isso seria possível até pensar em uma solução que incluísse uma anistia em troca das armas. Anistia que viria acompanhada de oportunidades reais de integração social. É uma proposta arriscada, mas que, se bem-sucedida, proporcionaria ganhos para os dois lados. Seria, talvez, o início de uma sociedade mais justa e menos violenta.

22 de janeiro de 2008

Sassaricando 2050

O post sobre o inglório destino dos sambas derrotados rendeu aqui no blog uma discussão interessante, com apenas uma ou outra canelada. A Eugenia, uma das editoras da Agenda do Samba e Choro - http://www.samba-choro.com.br/ - , chegou a propor o lançamento de um CD com sambas não escolhidos pelos jurados. Eu não pedi tanto, apenas reivindiquei o direito de, vez por outra, cantar um ou outro samba escanteado. Mas sei que é uma luta meio inglória: sambas vencedores já não duram muito, imagine o ocorre com os defenestrados...

Sambas de bloco são, de um modo geral, muito ligados ao contexto em que foram compostos e não têm qualquer pretensão à imortalidade. Mas talvez por isso mesmo mereçam ser guardados. Sua irresponsabilidade e descompromisso se traduzem em leveza e num certo ar de testemunho de época. Na prática, ocupam hoje o lugar das marchinhas - quem viu "Sassaricando" percebeu como elas, em décadas passadas, cumpriam o papel da sátira, da brincadeira, da crônica. Mais do que um ótimo espetáculo sobre marchinhas, "Sassaricando" é sobre o Rio, de como cariocas aproveitavam o carnaval para falar, de maneira bem-humorada, da cidade e do país.

Esse papel hoje é cumprido pelos blocos e seus sambas, que escrevem nas ruas um quase roteiro de nossas alegrias e sacanagens. Mesmo uma eventual agressividade de uma ou outra letra não deixa de ser um certo reflexo de tempos como o nosso, em que a sutileza tende a perder embates de goleada.

Pelo que sei - e não sei muito -, apenas o Simpatia lançou, há alguns anos, um CD com seus sambas. Acho que alguma instituição - o Arquivo Geral da Cidade ou o MIS - poderia lançar um projeto para recolher, catalogar e mesmo gravar os sambas (tá bom, só os vencedores) que os cariocas têm cantado pelas ruas antes e durante o carnaval. Todos seriam disponibilizados na internet. Não deve sair caro, não precisa de muita burocracia nem de pagamento de direitos autorais. Acho que a Sebastiana - entidade que reúne os blocos da zona sul - toparia ingressar nessa tarefa. "Sassaricando" existe porque as marchinhas foram registradas e gravadas, o que permitiu o trabalho de pesquisa da Rosa Maria Araújo e do Sérgio Cabral. Acho que não custa nada tentar garantir hoje o "Sassaricando" de 2050.

21 de janeiro de 2008

Trabalhadores do samba

Nesta terça, Moacyr Luz leva seu Samba do Trabalhador para o Canecão. Programaço: quem já esteve no Renascença ou no Samba Luzia sabe.

20 de janeiro de 2008

Jornada no Engenhão

Zé Carlos comemora seu gol, o primeiro do jogo de sábado passado. O Botafogo venceu por 2 a 0.

Se algum dia virar editor de Esportes vou baixar uma norma na redação: pelo menos um repórter escalado para cobrir um jogo vai entrar no estádio como torcedor. Ou seja: terá que comprar ingresso (pago pelo jornal, claro), encarar fila, roleta, ameaça de briga de torcida; e será obrigado a ver o jogo da arquibancada. Explico: as naturais facilidades oferecidas aos jornalistas credenciados acabam fazendo com ele não olhe para os bastidores do espetáculo. E é aí que o bicho pega.

Neste sábado fui com meus filhos ao Engenhão ver o Botafogo ganhar do Resende. De cara, uma boa surpresa, que não vi publicada no jornal (tive que, vergonha!, ligar para um assessor de imprensa do time para conferir): o estacionamento do estádio poderia ser utilizado mediante o pagamento de R$ 10,00. Vale a pena. O lugar é amplo, seguro, a administração foi terceirizada: mas faltou dar uma varrida ali. A quantidade de poeira no chão é assustadora, havia uma nuvem de pó flutando no ar: o carro ficou todo sujo. Coitados dos caras que ficaram horas ali, trabalhando, devem estar tossindo até agora.

A entrada no estádio foi tranqüila (chegamos mais de uma hora antes do jogo), mas... A diretoria do Fogão decidiu separar o estádio por setores, cobrando preços diferenciados. Boa idéia. O problema é que falou divulgar um detalhe: ao contrário do que ocorre nas arquibancadas do Maracanã, o torcedor teria, obrigatoriamente, que entrar no estádio pelo portão correspondente ao seu setor. Lá dentro, descobrimos depois, não havia como trocar de lado. Pior: as roletas aceitavam bilhetes independentemente do setor - assim, quem comprou ingresso para, digamos, o setor sul (mais barato), poderia passar seu ingresso pela roleta do oeste (mais caro). E vice-versa. É claro que deu confusão. Dentro do estádio, muitos tentavam trocar de setor e esbarravam nos seguranças que, coitados, não tinham autoridade para resolver o problema. Mas isso, tenho certeza, será resolvido pela diretoria do Botafogo - o Bebeto de Freitas é, de longe, o melhor dirigente do futebol carioca e seus planos para o Engenhão são muito bons (ele promete anunciar novidades nesta segunda).

Ah, uma questão mais grave: foram colocadas placas de publicidade numa lateral e atrás dos gols. OK, é preciso faturar. O problema é que as tais placas impedem a visão da bola de quem estiver sentado nas primeiras filas das arquibancadas. Por "primeiras filas" entenda-se, no barato, as dez primeiras - estava lá de torcedor, não parei para contar, apurar matéria. Mas sei que tive que ir subindo, subindo, subindo até conseguir uma cadeira que me permitisse ver todo o jogo. Quem estava abaixo de mim não viu o drible espetacular que o Jorge Henrique deu no zagueiro do Resende e que resultou no segundo gol do Botafogo. É preciso encontrar uma solução melhor, talvez colocar as placas num local mais longe do campo - por que não naquela faixa até hoje ocupada pelos já anacrônicos símbolos do PAN? O torcedor que pagou o ingresso tem direito de ver o jogo todo.

Bem, no mais, o Castillo tem jeito de ser um goleiro sério e o Ferrero jogou por dois: por ele e pelo Renato Silva, o zagueiro que fumou a maconha mais potente do mundo. Até hoje parece jogar sob o efeito da dita cuja. O Triguinho esteve bem. O Zé Carlos e o Wellington Paulista fizeram gols na estréia oficial, e isso é muito bom.

17 de janeiro de 2008

Binhos

Outro dia citei aqui uma matéria da "Piauí" que trazia nomes de supostos vinhos portugueses. Achei a dita cuja no site da revista. É, na verdade, um cartum do Reinaldo. Muito bom, por sinal. Vejam só se os vinhos a seguir não fariam, numa adega, boa companhia ao "Monte dos Cabaços".

Cova da Buça, Quinta das Culhoneiras, Nnhenhenha de Trás-os-Fanhos, Adega do Borzeguim Fanchão, Herdade Lariquinha de Chincheiral e Peúgas de Aldrabão.

16 de janeiro de 2008

Os sambas que não devem morrer

Na foto, que peguei no blog do Moutinho, o momento em que defendíamos nosso samba, lá no palco do Odisséia

Há mais de dez carnavais que, volta e meia, acabo participando da disputa de sambas de blocos cariocas - em especial, do Imprensa que eu Gamo, fundado e tocado por jornalistas. Já paguei incontáveis micos, coleciono algumas derrotas e duas memoráveis vitórias - ambas, no Imprensa. Na madrugada desta terça, eu e meus parceiros Marcelo Moutinho e Gabriel Cavalcante, o Gabriel da Muda, perdemos a disputa no Imprensa, ficamos em segundo lugar, um placar apertado, três votos pra lá, dois pra cá.

Perder nunca é bom, ainda mais quando achamos que nosso, vá lá, produto, é o melhor, como foi o caso. Um dos autores do samba vencedor escreveu em seu blog que queria, com ele, "chocar a sociedade" - nós, mais modestos, desejávamos apenas ajudar a divertir uma pequena parte dela, aqueles malucos que saem pulando duas semanas antes do Carnaval pelas ruas de Laranjeiras.

Perdemos, perdemos, é do jogo, nada a reclamar. Mas as derrotas em disputas de samba trazem uma questão adicional. Por uma espécie de convenção, uma lógica de respeito ao vencedor, samba derrotado é inapelavelmente condenado a morrer. É uma espécie de aborto ou de morte pós-parto. Pelo que lembro, há apenas uma grande exceção à regra, o "Estrela de Madureira", de Acyr Cardoso e Pimentel, que, derrotado na disputa pelo samba do Império Serrano de 1975, continua a ser tocado em praticamente todas as rodas da cidade. O vencedor ("Baleiro-bala/Grita o menino assim"), quase não é lembrado.

Um livro pode vender pouco, um filme pode ser ignorado pela crítica e pelo público - mas ambos, de alguma forma, cumprem seu percurso. São lançados, exibidos e lido/vistos por um determinado número de pessoas. Nascem, vivem - e ficam ali, devidamente catalogados ou arquivados, preservados em algum modesto cantinho da história e, quiçá, da eternidade. Já o samba abortado, não. Por melhor que eventualmente seja, sobrevive, se tanto, por alguns anos na cabeça de seus autores. Não que haja assim tantas obras-primas entre esse tipo de samba - normalmente são muito ligados à realidade imediata, o que reduz um pouco alguma possibilidade de vida eterna, amém. Mas, caramba, foram todos compostos com dedicação, carinho e algum talento. Esse destino do samba que, se não ganhar, vai se perder, contribuiu para a minha não cumprida promessa de parar de me meter nessa doideira.

E é em protesto contra esta morte prematura, e sem qualquer disposição de levantar polêmica com a decisão da direção do bloco, que jogo aqui arquivos com letra e música do samba que eu, Moutinho e Gabriel compusemos para o Imprensa em 2008. O arquivo sonoro é precário, registrado logo depois que demos a nota final ao samba. Mas vale para a história. Espero que vocês se divirtam.

Obs: não consegui colocar o áudio aqui no blog. Vou tentar mais tarde. Por enquanto, vai a letra.

O CIRCO DA TROPA
Gabriel Cavalcante / Fernando Molica / Marcelo Moutinho

O mosquito picou o presidente
E o nosso Lula amarelou
Tomou bronca do Hugo Chavez
Foi-se o gás do Evo Morales
E no Senado, o tempo fechou

O “seu” Renan
Esqueceu da camisinha
Imprensou de qualquer jeito
E gamou na coleguinha

Relaxa e goza, meu amor
Por que não se cala e me beija?
Sem avião pra viajar BIS
No Imprensa eu vou embarcar

Zé Dirceu tá de telhado novo
Eu já tô careca de saber:
Pra virar circo, só falta a lona
Brasília ou Rio, é a mesma zona

Ô César Maia... pede pra sair!
Quebra esse galho, meu São Sebastião BIS
Quero um prefeito que não seja fanfarrão!

14 de janeiro de 2008

Cabaços aos montes

Há alguns meses, a "Piauí" publicou um artigo de humor com supostos - e engraçadíssimos - nomes de vinhos portugueses. Uma pândega. Mas, acreditem, o vinho de que trato neste post existe, é até bem cotado no mercado. E, incrível!, é facilmente encontrável nas boas casas do ramo. Há quem o considerasse quase extinto, mas no entanto, cá está ele, pronto para ser consumido, sem culpa e sem esforço. O mais que tradicional "Monte dos Cabaços":



E não é só: o tal vinho é produzido por uma orgulhosa e - apesar de quem possa sugerir o contrário - bonita proprietária de uma tradicional quinta alentejana. A senhora Margarida Cabaço. Uma raridade, pois (ainda mais pela idade, já deve ter passado dos 40, mole). E o blog, que não pode deixar de ter algum compromisso jornalístico, apresenta a todos a foto de Dona Cabaço - ou seja, a partir de agora, ninguém poderá dizer que não liga o nome à pessoa. O senhor ao lado dela na foto deve ser o insistente e paciente maridão (paciência, sabemos todos, é algo importante na produção de vinhos). Como podem notar, o casal não tem filhos - pelo menos, eles não estão na foto.



Ah, importante, os Cabaços podem ser visitados. Confiram em http://dn.sapo.pt/2004/12/21/boa_vida/um_monte_alentejano_para_descobrir_p.html. Neste link vocês poderão encontrar detalhes para hospedagem na propriedade, aberta (quem diria...) ao turismo. Deve ser divertido, por alguns poucos dias, pelo menos. Depois deve ficar meio chato - os Cabaços não devem ser anfitriões muito, digamos, animados. Consta que são meio fechados, resistentes às investidas de estranhos, não gostam daquele entra-e-sai.

11 de janeiro de 2008

O furo do Tartaglia (com todo o respeito)

Num post abaixo eu disse que corria para ser o primeiro a destacar como o Gabriel da Muda canta bem. Descobri tardiamente que fui furado pelo grande Cesar Tartaglia (confiram em http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/frontdorio/post.asp?t=habemus_cantor&cod_Post=83479&a=5 . Nenhum problema, muito pelo contrário. Mesmo no mundo virtual é preciso respeitar o vale o escrito.

9 de janeiro de 2008

Overdose de notícias

De tédio é que jornalista não morre aqui no Rio. Na semana passada eu estava na entrada da ilha do Fundão entrevistando uma baleada no réveillon de Copacabana quando um sujeito passou por mim e avisou que uns duzentos metros ali na frente, na entrada do campus da UFRJ, um homem havia sido atropelado - e o socorro estava demorando a chegar. Terminada a entrevista, passamos por lá, a ambulância estava recolhendo a vítima, ainda deu pra fazer algumas imagens. Logo depois seguimos para a praia de Copacabana, para completar a matéria sobre os tiros que mancharam a virada do ano na cidade. Por volta das 21h, estávamos na areia, ao lado do palco dos shows, quando passou um casal vindo da direção do mar: a mulher chorava, queria encontrar um PM; eles, turistas vindos de Juiz de Fora, tinham acabado de ser assaltados. Saí da redação para fazer uma reportagem, esbarrei em outras duas.
Ontem fui fazer matéria sobre uma bala que, perdida, achou por bem cair num apartamento no Alto Leblon. Enquanto estava lá, soube de outra notícia: uma segunda bala sem direção tinha quebrado a janela de um apartamento em Copacabana. A reportagem ganhou importância, seria sobre duas balas perdidas na zona sul do Rio. Corremos pra lá. No caminho, já em Copa, tropeçamos em outro fato. Paramos o carro para perguntar a um guarda municipal a localização da rua em que ficava o prédio atingido pelo tiro. Mas antes mesmo de fazermos qualquer pergunta, o guarda olhou o carro de reportagem e foi avisando: "É na Ronald de Carvalho!" Como assim? Nosso destino era outro: "O senhor sabe onde fica a rua tal?" Ele sabia. Em seguida, perguntamos o que tinha acontecido na Ronald de Carvalho. "Tá cheio de polícia lá, invadiram um frigorífico que tem carne roubada, uma confusão danada. É bom vocês irem até lá", aconselhou. A história não era bem essa, mas havia mesmo outra notícia esperando para ser reportada.

Pra não dizer que só falei do Rio: na semana passada li, na coluna do José Sarney, na Folha, uma informação que não li, vi ou ouvi em nenhum outro lugar: segundo o ex-presidente, 34 pessoas foram mortas na passagem do ano em Salvador. Por que isso não foi noticiado nacionalmente, hein? Será que o repórter Sarney errou?

8 de janeiro de 2008

Brasil, cansamos?

Será que nos cansamos do Brasil? Dia desses, conversando com o Antônio Torres sobre as, de um modo geral, baixas vendagens de livros brasileiros de ficção, ele, meio irritado com ôba-ôba em torno de Cabul, disse algo bem interessante: o Brasil estaria deixando de ocupar o imaginário dos brasileiros. Ou seja, estaríamos pouco dispostos a sonhar com o que nos cerca. Seríamos assim capazes de nos transportamos para a Turquia, para a Índia, para o Afeganistão, para outros territórios remotos que escondem segredos guardados por gente de nome esquisito. Mas estaríamos meio refratários à idéia de compartilhar dramas, sonhos e desejos com Josés, Marias, e, numa concessão aos novos tempos, Dayannes e Jeffersons. É um fenômeno curioso, já que livros sobre aspectos da história do país se revezam nas listas de mais vendidos.

Nos últimos 50 anos, o Brasil passou por vários momentos de “agora vai”: governos JK e Jango, o tal do milagre brasileiro forjado na ditadura, a luta contra a própria ditadura, a expectativa pelos dias melhores que viriam com a redemocratização, as eleições para governadores, as diretas já, a constituinte, a eleição do presidente, os governos FHC e Lula. Alguma coisa disso teria que ter dado certo, né? Mesmo durante a ditadura havia a perspectiva de uma grande melhora do país, sonhávamos com isso, acreditávamos nisso. E talvez isso nos fizesse mais interessados no Brasil, nos seus destinos, nos seus escritores, nos universos que eles criavam. Livros de autores como Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza, Antonio Callado e Antônio Torres eram de leitura quase obrigatória - lançado em 1976, o “Essa terra”, do Torres, vendeu muito logo de cara, está na 15ª edição! Será que chegaria a tanto se fosse publicado hoje?

De certa forma, dava gosto sonhar com o Brasil. Hoje, sei não. O país melhorou, claro, mas muito menos do que imaginávamos. Quase no fim na da primeira década do século 21 ainda discutimos questões básicas, como ensino público de qualidade. Ficamos meio naquela história medíocre da “utopia possível” sintetizada pelo FHC – que, tempos depois, diria que “o Brasil é isso mesmo”. Isso justifica até mesmo a transformação do PT num grande PMDB. O que que isso tem a ver com literatura? Pode ter a ver. Cansado de esperar o tal dia que nunca chega, o leitor pode ter decidido sonhar com mundos mais interessantes e fascinantes, e tome Cabul. E aí é que nos ferramos, autores ou não. As pessoas, mais do que pouco interessadas na literatura brasileira, estariam desinteressadas do Brasil, não necessariamente do país real, palpável, mas daquele que as poderia encantar.

Em tempo: segundo a Ilustrada deste domingo, “O caçador de pipas”, lançado no Brasil em 2005, já vendeu 1,6 milhão de exemplares por aqui. “Cidade do sol”, outro livro do Khaled Hossein, já está nas estantes de 550 mil brasileiros.

6 de janeiro de 2008

Gabriel, o cantador



Pra não desperdiçar a chance de, daqui a uns poucos anos, poder dizer que fui o primeiro a escrever sobre isso. O cara da foto aí de cima é exagerado em tudo: na pouca idade (inacreditáveis 21 anos), na sede (bebe direitinho, o rapaz), no peso (três dígitos, fácil), no mau gosto (fez tatuar numa das pernas o escudo daquele time da Gávea, um negócio horroroso), no ótimo gosto (conhece todos os sambas compostos em todos os tempos). E, principalmente, toca muito bem cavaquinho e é um excelente cantor. Vozeirão de gente grande; é afinado, capaz de se sobressair no meio da mais confusa roda de samba. O nome dele é Gabriel Cavalcante, o Gabriel da Muda, presença quase obrigatória nos melhores sambas da cidade. Está sempre ao lado do Moacyr Luz em pelo menos duas ótimas rodas cariocas: o "Samba, Luzia!", às sextas à noite, ali perto do Santos Dumont, e, às segundas à tarde, no "Samba do Trabalhador", no Renascença. Também bate ponto quinzenalmente na rua do Ouvidor, na roda promovida pela livraria Folha Seca e pelo restaurante Antigamente. Ele já registrou sua voz no CD "Samba do Trabalhador", mas já tá na hora dele gravar um disco solo. Ah, ele e o meu colega Eduardo Carvalho têm um o blog, o Samba, boemia e vagabundos!, em http://sbvagabundos.blogspot.com/ .

3 de janeiro de 2008

Rodrigues & Bolaño


Sérgio Rodrigues, outro colega em dobro - jornalista e escritor -, teve seu ótimo conto "O homem que matou o escritor" incluído na revista eletrônica de literatura internacional "Words without borders": http://www.wordswithoutborders.org/index.php . Entre outros autores selecionados está Roberto Bolaño, o que revela o nível de exigência da revista. Vale passear por lá, mas o melhor é ler o livro inteiro, em português, lançado em 2000 pela Objetiva.

2 de janeiro de 2008

Dicró


Trabalhar no dia 31 de dezembro não é exatamente um prazer. Fazer matéria, debaixo de sol - e que sol! - no Piscinão de Ramos, não chega a ser algo que peçamos a Papai Noel. Mas é do jogo. E acredite: pode ser divertido. Isso quando se tem o prazer de entrevistar o Dicró, grande sambista, expoente do que há alguns anos se chamava de sambandido. O cara é muito engraçado. Capaz de, em menos de cinco minutos, despejar algumas pérolas para o repórter encharcado de suor. Ele discorria sobre as maravilhas do réveillon à beira-piscinão - e elencou as vantagens da festa em relação àquelas que ocorreriam do lado de lá do túnel:


1. "No piscinão não entra mulher com celulite."

2. "O melhor da festa vai ser a minha sogra fazendo striptease."

3. "Vou cantar até de manhã... se a polícia não chegar. Mas, tá tudo certo, tá tudo no arreglo, não vai ter problema não."

4. "Vou cantar em vários idiomas, em inglês, francês, alemão. Aqui vem muito turista, até porque é mais perto do aeroporto internacional."


Depois de soltar as frases, ele cantou um trecho de um de seus sucessos, a "Melô da galinha", de Pedrinho da Flor.

Você sai de casa igual a uma bonequinha
Toda alinhada, maquiada, cheirosinha...
Mas lá na esquina o povo sempre diz que você é galinha
Você não tem bico, não tem pena, não tem asa
Não entendo nada por isso fico na minha
Só sei que na esquina o povo diz que você é galinha


Não é lá muito politicamente correto. Mas é engraçado pacas. O clipe da música está em http://www.youtube.com/watch?v=r06WDju36hU .

Liberdade para a menina C.!


Para não cometer nenhuma infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente, vou omitir o nome da menina que inspira esta crônica. Menina que se impõe - aos berros - ao texto. Explico: a C. é minha vizinha, mora num prédio ao lado do meu, deve ter uns 5/6 anos de idade. E, desde que era um bebê, chora e grita muito. Por problemas acústicos, tudo o que é sussurrado em seu apartamento é ouvido aqui em casa. Imagine o que acontece quando se grita por lá. E olha que se grita muito. Tanto que me vi obrigado a comprar um aparelho de ar-condicionado para o meu escritório. Sem ele, sem fechar as janelas, jamais conseguiria ter escrito o "O homem que morreu três vezes" - o relato das aventuras do meu curioso personagem naufragaria diante dos gritos da C. e, principalmente, dos berros de sua mãe.
A mãe, o X da questão. A mãe da menina grita o tempo todo com ela - desde que a C. era bebê. E tome de "C. não faz isso!", "C. sai daí!", "Pára com isso C.!", "C. você me enlouquece!", "Já pro castigo, C.!". Já pensei em sair grudando nos postes e nos muros da rua cartazes pedindo liberdade para C. A mãe dela deve ser veterana do Desipe, ex-carcereira, sei lá. A mulher enche o saco da filha, o tempo todo. Nunca a ouvi propor algo como uma ida ao parquinho, à praia, ao cinema. Nada de chamá-la para tomar um sorvete, um suco ali na esquina. A mulher só reclama. E a filha, claro, aprendeu a conviver com os gritos e - céus! - a reproduzi-los. A C. também só fala aos berros, e que voz potente tem a menina! Uma berra daqui, a outra responde dali. E tome birra, choros, esganiços. A compra, no Natal, de uma piscininha de plástico, acabou com o que restava de calma por aqui. Dava pra acompanhar, pelos diálogos, toda a movimentação na casa, as evoluções aquáticas da criança: o apartamento delas tem uma área externa, local de confraternização familiar e de sonoros e eventuais churrascos.
Bem, espero que em 2008 a mãe de C. encontre aquela paz tão citada nos votos de felicidades para os anos vindouros, que tenha um pouco mais de tranqüilidade nas suas relações com o mundo e, principalmente, com a filha. Que aprenda que não é necessário berrar o tempo inteiro. Talvez, neste silêncio, consiga descobrir virtudes na filha, tenha mais prazer na convivência com ela. E, quem sabe?, possa sacar como é bom poder desfrutar da companhia de um filho. Torço para ouvi-la convidar a filha para algo que não seja uma ida ao castigo. Vai ser bom para ela, para a C., para seus vizinhos.