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10 de março de 2008

Páginas amarelas

O Globo, 20/10/1991

O balão de quem manda


FERNANDO MOLlCA



Passava das 23 horas do último domingo quando começou o espocar de fogos e tiros. No céu, o motivo da festa: um balão que trazia dependurada a inscrição "Da 12". Da 12, Gilson da 12, varejista de drogas, dono dos morros do Andaraí e Divinéia, morto pela Polícia Federal há dois meses. Morreu na Baixada, foi velado no morro do Andaraf, na quadra do bloco Flor da Mina. Os jornalistas - a exemplo do que ocorre em velórios de algumas celebridades - não puderam entrar.
O comércio da área foi obrigado a fechar, numa manifestação de luto compulsório. No dia seguinte, outra manifestação de poder: crianças do morro foram colocadas à frente do cortejo para impedir fotos dos sócios de Gilson da 12. Não havia como evitar a presença de fotógrafos no enterro.
Tento fotografar o balão que leva a homenagem. Depois, corro para a câmara de vídeo, que, emprestada, passava uns dias lá em casa. O balão já está muito longe. Vou para a TV conferir o resultado. A fita mostra apenas um OVNI, um objeto voador não-identificado, cercado de riscos coloridos. Mas ficaram gravados os fogos, os tiros e os clarões que continuavam a surgir por entre as luzes do morro.
As imagens lembram outras, igualmente precárias, meio indefinidas e assustadoras. Aquelas, dos mísseis que cruzavam os céus do Iraque, Israel e Arábia Saudita durante a Guerra do Golfo. Novos estampidos fazem contraponto à minha CNN privé. Aqui, â guerra continua. Já estou, de novo, pra cá de Bagdá. De volta ao Grajaú.
Entro no quarto de meus filhos e, como dissera pela manhã Lisa Simpson (aquela de "Os Simpsons"), sinto um "arrepio ético". E se, o mais velho, de 4 anos, tivesse acordado e me perguntado o motivo da barulheira? Será que eu diria um "nada não, só uma festa para um bandido que morava aqui perto"? Ou será que teria mentido (algo como "mais uma festa pelo Dia das Crianças")? Bem, ele não acordou. As varandas e janelas que me cercam já retornaram para seus domingos. Quem não decifrou o enigma do "Da 12" deve estar até aliviado - foi só um balão, nada comparável com os tiroteios que costumam varar madrugadas.
Melhor também para os do morro - não houve troca de tiros, apenas uma barulheira danada que durou uns dez minutos. As crianças de lá devem ter acordado - as de 4 anos ou mais certamente já sabem quem foi Gilson, conviveram com ele. Muitas podem até ter trabalhado para ele. Todas devem ter ficado fascinadas com o espetáculo do balão.
Apesar das deficiências do ensino brasileiro, elas não devem ter tido nenhuma dificuldade para decifrar o "Da 12".
Essas crianças também devem saber quem é o número da vez. A numerologia de subsistência deve ser aprendida com presteza: ao contrário dos grandes atacadistas das drogas, estes, digamos, franqueados, costumam ter vida curta. Gilson morreu com 27 anos.
O território de Gilson da 12 era por ele mesmo chamado de "Cidade sem lei". A expressão revela orgulho, mas, ao mesmo tempo, apresenta um erro no diagnóstico. Existem leis por lá. Só que são outras, diferentes das que, pelo menos em tese, vigoram fora dos limites daqueles morros. Leis criadas sem necessidade de uma Constituinte, bastante claras e duradouras: resistem melhor à mudança de xerifes que as leis brasileiras às trocas de presidentes. Não é preciso sequer uma emendinha para modificar algo tão simples como um "quem manda aqui sou eu".
Enfim, foi só o barulho. Afronta por afronta, soltar balões também é ilegal. Mesmo que não homenageiem traficantes. Nada de muito grave, de anormal. Como os seqüestros, os assassinatos, os roubos de carros, cabelos, tênis, mochilas e cestas básicas. Como o extermínio de crianças e jovens. Há anos que dormimos com barulhos como esses.

24 de janeiro de 2008

Páginas amarelas (5) Anistia

Conversei ontem com um colega de redação sobre as fotos que mostram PMs saqueando um caminhão de entrega de cerveja. Ele fez um diagnóstico e uma proposta: do jeito que está a polícia do Rio, só há um jeito, começar tudo de novo. Sugeriu uma anistia para policiais infratores e um recomeço, que teria que ser acompanhado de uma reestruturação da PM - a criação de um outro patamar salarial seria mais do que recomendável. Na conversa, surgiu um consenso meio óbvio: a criminalidade só chegou ao atual estágio graças à colaboração e conivência de setores policiais. É o que explica a quantidade de armas e de munição à disposição dos bandidos. Uma anistia ampla - e que excluísse os casos de crimes contra a vida - talvez fosse interessante.

Lembrei de um texto que escrevi em 1996 e que foi publicado na "Folha". Hoje talvez ele pareça meio inocente, sei lá. Mas, diante da complexidade do problema, não custa - até como exercício - pensarmos em soluções mais originais . O investimento no aumento da repressão e no uso da violência policial tem sido recorrente nos últimos 20 e poucos anos. O resultado, todos conhecemos. Na época, falei em anistia para bandidos, talvez seja o caso de - como quer meu amigo - incluir os fardados no pacote.

Pacto da Rocinha

Folha de S.Paulo, 13/01/1996

Fernando Molica

RIO DE JANEIRO _ Mesmo os defensores da solução policial para o problema da violência admitem que a raiz da situação de conflito está plantada no solo das carências e desigualdades sociais.
Já há algum tempo, estudiosos da situação carioca detectaram que, em muitas favelas, o poder formal perdeu a batalha para outro _um poder real, de fato, exercido pelo tráfico de drogas e construído com base no medo e em uma espécie de senso difuso que identifica no Estado uma espécie de inimigo, uma entidade que só aparece por ali metido em uniforme de polícia.
Há alguns anos falava-se no Brasil em um pacto social, um acordo inspirado no Pacto de Moncloa (o que viabilizou a transição democrática na Espanha) e que permitiria à sociedade administrar as liberdades recém-conquistadas.
Bem ou mal, o Brasil institucionalizou-se. Esse processo deixou de fora, porém, milhões de pessoas. Muitas dessas, como os sem-terra, continuam dispostos a participar da brincadeira: para isso chegam a arranhar a legalidade, mas seu objetivo final é o de integração na sociedade.
Outros, como os jovens que vivem armados em favelas cariocas, já perderam essa expectativa de integração: seu horizonte institucional aponta apenas para a cadeia.
A reversão desse quadro exigiria atitudes mais corajosas. O pressuposto seria o Estado e a sociedade admitirem sua responsabilidade na criação das condições que permitiram a expansão da miséria e da violência.
Dessa constatação e da vontade de mudança surgiria uma espécie de ''Pacto da Rocinha'' _isso para citar uma das mais célebres favelas cariocas. Seria um acordo pelo qual o Estado, em seus diferentes níveis, se comprometeria a resgatar a tal dívida social, expressa hoje na falta de empregos, saneamento básico, escolas, transporte e atendimento médico.
Seria também necessário desarmar os grupos marginais. Para isso seria possível até pensar em uma solução que incluísse uma anistia em troca das armas. Anistia que viria acompanhada de oportunidades reais de integração social. É uma proposta arriscada, mas que, se bem-sucedida, proporcionaria ganhos para os dois lados. Seria, talvez, o início de uma sociedade mais justa e menos violenta.

30 de dezembro de 2007

Páginas amarelas (4) O ano da bossa

O texto que está abaixo foi publicado no dia 19/12/90, na Folha. Era uma crônica sobre o show ocorrido dois dias antes, no Scala 2, no Rio, em homenagem ao cantor Lúcio Alves - na época, muito doente. A arrecadação do espetáculo seria para pagar seu tratamento. O show foi espetacular, apesar da previsível ausência de João Gilberto. Republico o texto para fechar 2007 e abrir 2008, quando serão comemorados os 50 anos da bossa-nova.
Mas o mesmo mesmo é clicar no link http://www.youtube.com/watch?v=DmV0TcTNJ3o , ele leva ao Youtube, a uma interpretação espetacular de "Garota de Ipanema" feita por Tom & João.
Feliz Ano-Novo, que ele seja compatível com o espírito da bossa-nova. Sem saudosismo, claro, mas com esperança de tempos mais delicados. Um ano cheio de bossa.


Músicos fazem show saudosista no espírito bossa-nova

Fernando Molica
Da sucursal do Rio

Bem que Agnaldo Timóteo, com a sutileza de um porta-aviões nuclear, tentou arrebentar o delicado cais destinado aos barquinhos da bossa-nova. O diretor musical do show, o pianista Alberto Chimelli, também ameaçou acinzentar com uma tempestade “fusion” o céu azul das canções regidas pela trindade sol-sal-sul. Mas Tom Jobom, Os cariocas, Tito Madi, Sebastião Tapajós, Doris Monteiro, Miltinho, Caetano e Leny Andrade souberam tomar o leme e fazer o show em benefício de Lúcio Alves navegar em águas compatíveis com o estilo do homenageado.
Claro, o saudosismo foi inevitável, Tito Madi chegou a cantar uma música que fala de um Rio “que saiu dançando amor”; Caetano Veloso pescou “Fim de semana em Paquetá” – exemplos de uma cidade cuja sutileza foi fundamental para gerar um movimento como a bossa-nova. O Rio hoje está mais para a voz peso-pesado de Agnaldo Timóteo e a decadência expressa nos espelhos e dourados do cenário do show, o Scala 2, no Leblon, zona sul do Rio.
A beleza das canções e a qualidade de seus intérpretes permitiram que o show não se restringisse a um exercício de arqueologia musical. Os acordes de Tom Jobim, a afinação de Tito Madi, a técnica de Tapajós, os audaciosos arranjos de Os Cariocas e os improvisos de Leny Andrade demonstraram, mais uma vez, que a bossa-nova driblou os riscos da velhice e se colocou na posição dos clássicos. Prova de sua vitalidade é que continua a influenciar muita gente no Brasil e o exterior – a atual fase acústica de Caetano, um dos mais ousados artistas contemporâneos, não deixa de ser resultado de uma visita a essa fonte bossa-novista. E é esta condição clássica que vai permitir que a bossa-nova exista mesmo depois deste discreto modismo nostálgico gerado pelo livro “Chega de saudade”, de Ruy Castro.
No show, a bossa-nova foi mais um referencial. Alguns dos artistas que se apresentaram começaram antes de João Gilberto, no final dos anos 50, revolucionar a música brasileira. Quase todos, porém, entraram no clima da bossa-nova. Até mesmo as piadas do apresentador Ivon Cury ajudaram a criar este ambiente meio maroto e elegante, cool, como se dizia há alguns poucos anos.
O, digamos, impacto da presença de Agnaldo Timóteo cantando “Por causa de você” foi neutralizado, em seguida, por Tom Jobim. Depois vieram Caetano, e Os Cariocas. Esses conseguiram injetar cheiro de mar até na paulistíssima “Sampa”. Ah, teve também Cauby Peixoto, que entrou cantando “Conceição” e fechou sua parte com “People”. Nada disto é bossa-nova, mas, depois de Agnaldo Timóteo, até que pareceu muito natural.

24 de dezembro de 2007

Páginas amarelas (2) - Tom & João

Esta reportagem, que abre no blog as homenagens aos 50 anos da bossa-nova, tem uma história curiosa. Em dezembro de 1992, a Brahma promoveu no Teatro Municipal do Rio um reencontro entre João Gilberto e Tom Jobim: havia muito tempo que eles não dividiam o mesmo palco. A participação de Tom no show de João seria o ponto alto do espetáculo e sequer chegou a ser divulgada. Poucos dias antes, a Folha de S.Paulo recebeu uma proposta interessante: dois de seus repórteres seriam colocados nos bastidores do show. Um seria o garçom do João Gilberto no Municipal; o outro assistiria, sem se identificar como jornalista, ao ensaio entre os dois grandes da bossa-nova. Fiquei com medo de derrubar café-com-leite no João, a condição de fã do baiano potencializaria minha já preocupante condição de desastrado. O Plínio Fraga assumiu o cargo de garçom e eu virei aspone de um sujeito que teria acesso ao ensaio, que ocorreria numa suíte do Caesar Park de Ipanema. No dia 09/12/92, a Folha publicou o texto abaixo:

Apresentação teve ´ensaio secreto´no domingo

Cantores se encontraram no Caesar Park do Rio


Chega de saudade: depois de muitos anos - seis ou 15, as versões são conflitantes - João Gilberto e Tom Jobim voltaram a se encontrar no domingo. Nada de abraços e carinhos sem ter fim: sorrisos, um aperto de mão, um arrastado "Oi, Tom". Na véspera, João e Tom haviam conversado por uma hora e meia por telefone.
O encontro foi às 18h30 na suíte do 12o. andar do hotel Caesar Park, em Ipanema, zona sul, onde João passou a semana que antecedeu ao show do Municipal. Acompanhado da mulher, Ana, Tom chegou às 18h20. João havia saído.
Ao chegar à suíte, Tom se decepciona ao ver o piano elétrico reservado para o ensaio. Calça branca, camisa larga branca e amarela, chapéu de palha, balança a cabeça ao tocar alguns acordes. "Não dá", diz. Entre uma nota e outra, desiste de acender o charuto. "O João vai ficar zangado", justifica.
Nisto, chega João. Cumprimenta Tom e Ana, lamenta a quebra da alça da caixa de seu violão e reclama do ar-condicionado. Preocupado com o show, João não dormia havia três dias - preocupação semelhante o fizera pedir, por três vezes, o adiamento da apresentação de anteontem, que estava prevista para agosto.
Ainda na suíte, João canta "Chega de Saudade", que viria a abrir o bis no show. Decepcionado com o piano, Tom sugere que o ensaio seja em sua casa, o que é aceito por João. À espera do elevador, um silêncio constrangedor. Tom quebra o gelo: elogia a participação de João no comercial da Brahma e critica a "world music". João concorda com um muxoxo.
No hall, Tom caminha na frente, João, de paletó cinza e tênis brancos, vai mais atrás, agarrado ao violão: passo tímido, quase caipira, pés um pouco virados para dentro. Atravessam o vidro da portaria do hotel e encaram, um ao lado do outro, a claridade de Ipanema. Vistos de costas, são personagens de uma não-realizada foto histórica: as duas silhuetas em contraluz emolduradas pelo mar de Ipanema.
O ensaio durou três horas. Anteontem, às 20h2o, eles voltaram a ensaiar no Municipal. Já havia uma certa cumplicidade. Tom cantava uma brincadeira com o nome do parceiro de palco: " Viva o João Gilberto/ Viva o João do Prado/Vivia o João Gilberto Pereira de Oliveira."
João estimulava Tom a improvisar mais em "Chega de Saudade": "Faça como quiser, Tom", dizia, sentado a seu lado, em uma ponta do banco do piano. Pode ter sido o reinício de uma bela e produtiva amizade.

17 de dezembro de 2007

Páginas amarelas (1)

Publicado na "Folha de S.Paulo" em 15/01/96.

Túlio & Télvio

Fernando Molica

RIO DE JANEIRO - A contratação do atacante Télvio pelo Botafogo tem a cara do Brasil. Ah, que Télvio é esse? É o irmão gêmeo de Túlio.
Ao contrário do irmão, artilheiro do campeão brasileiro, Télvio é dono de um currículo limitado. Foi parar no Botafogo graças a Túlio, que incluiu a contratação do irmão no pacote que impediu sua suposta venda para o Japão.
Túlio agiu de acordo com uma das mais fortes tradições brasileiras: a de arrumar um emprego público para um parente. Os clubes não são repartições públicas ou empresas estatais, mas têm lá suas semelhanças. Assim como acontece com as instituições públicas, a propriedade de um clube é meio difusa.
Esses clubes são geralmente administrados de forma amadora: ao contrário do que ocorre em empresas privadas, seus dirigentes não são punidos pelos eventuais prejuízos por eles gerados.
Assim, os clubes acabam vítimas de um fenômeno semelhante ao que atinge repartições públicas ou estatais: o que deveria pertencer a todos acaba sendo considerando como não sendo de ninguém. Logo, não há nada de errado em patrocinar uma sangriazinha aqui ou ali.
Ao longo dos séculos, o Estado brasileiro foi transformado em um empregador irresponsável. Isso com o incentivo da maioria da população, ávida por um emprego público, uma colocação.
A conta do empreguismo, que era paga pela sociedade, hoje desaba também sobre os outrora beneficiados, punidos com a retração de salários e com a falta de perspectivas profissionais.
Apesar de todas as discussões sobre nepotismo e empreguismo, para muita gente político bom continua a ser aquele que garante o futuro de seus eleitores na forma de um emprego público.
Túlio brilhou no campeonato do Botafogo, agora ajuda a transformar o clube em uma Botafogobras ou, como diria o deputado Roberto Campos, uma Botafogossauro. Nenhuma novidade: na lógica nacional, empreguismo ruim é aquele que beneficia apenas aos outros.
*
Por último: deu na Folha que 67% dos cariocas têm mais medo do que confiança na Polícia Militar. É impossível não recorrer ao apelo de Chico Buarque: ''Chame o ladrão''!