3 de setembro de 2006

A grande cena

É uma daquelas cenas que valem o ingresso. Aquele raro momento em que o implícito vale mais que o explícito, que o escancarado. Lembra uma outra, igualmente delicada, de "Eles não usam black-tie" - em um determinado momento da crise gerada pelo movimento grevista, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam feijões na cozinha. Não há discurso, não há - ou quase não há - diálogos. Há apenas perplexidade, dúvida, angústia. Há, enfim, cinema, muito cinema. O melhor cinema daquele filme de Leon Hirzman. A cena de agora é de "Zuzu Angel", de Sérgio Rezende. Um bom e mesmo emocionante thriller, prejudicado, aqui e ali, por cenas em que há pouco cinema e um excesso de verborragia. Mas, enfim, a cena: logo depois do assassinato de seu filho, Zuzu Angel, incorporada por Patrícia Pillar, sobe uma ladeira em busca do pai de Carlos Lamarca, o líder guerrilheiro cujo endereço Stuart Angel se negara a revelar sob tortura. Recusa que lhe valera uma dose-extra de torturas e que lhe causaria a morte. Zuzu entra numa sapataria e encontra um velho - Nélson Dantas, brilhante - a trabalhar. Zuzu fala e fala: fala que seu filho morrera para proteger o filho daquele homem ali. Em nenhum momento cita o nome de Lamarca, o oficial do Exército que desertara para aderir à luta armada. O velho parece impassível, ouve o discurso daquela mulher enquanto continua a trabalhar. Trabalho que envolve alojar alguns pregos entre os lábios - uma técnica dos sapateiros para facilitar o seu ofício. Mãos e boca ocupadas, o velho ouve a cantilena daquela mulher. Parece não ouvir o que ela diz; melhor, parece ouvir mas não entender bem o que ela fala, parece ter uma certa postura olímpica, distante. Algo como quem é essa louca que vem me falar em filho quando eu também, de certa forma, perdi o meu, eu que nem sei onde ele está, ele que é um dos homens mais caçados do país? Dantas olha para a mulher, para o pé de sapato que conserta; martela o sapato, coloca e tira pregos nos lábios. Até que algo rouba a atenção daquela mulher. Ela que, até então, limitava-se a despejar seu rancor sobre o velho, percebe enfim o quanto de dor - calada, sufocada - havia naquele homem mudo. De seus lábios saía um filete de sangue, sangue que brotava de uma ferida causada pela pressão exercida pelos lábios sobre aqueles pregos. Cada palavra de Zuzu fora como uma martelada na alma, na boca do pai de Lamarca; pancadas cuja força enfim se revelava naquele filete de sangue. Uma dor que revela uma outra forma de tortura, uma dor cruel, sem sentido, que desnuda a impotência de quem a causa e de quem a sente. Uma dor bumerangue, pregos que agora atingem quem, até há pouco, despejava tantas e tantas dores. Uma dor não-óbvia, difícil de detectar e, principalmente, mostrar. Uma dor que só um grande filme - ou um grande livro, ou um grande quadro - pode revelar. "Zuzu Angel" não chega a ser um grande filme, mas abriga uma grande cena, digna do melhor cinema, de dois grandes atores, de sensíveis roteiristas e diretor. A cena que nos faz cúmplices daquelas tantas dores, dores que passam a doer também em todos nós.