O texto abaixo foi publicado em 1994, no caderno Mais!, da Folha de S.Paulo. Era uma tentativa de reflexão sobre as relações entre as escolas de samba, suas comunidades de origem e a presença, nos desfiles, de muitas e muitas pessoas externas a esse universo. Achei legal publicá-lo aqui depois que li, no blog do Aydano André Motta (http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/chopedoaydano/) , um relato de cortar o coração sobre o ensaio do Império Serrano no sábado passado. No texto, o Aydano fala em "neófitos do samba", que migram de quadra "segundo a moda". Nada contra, claro - os ensaios são abertos, cada um tem o direito de escolher seu local de diversão. O que assusta é a possibilidade das escolas dependerem cada vez mais deste público de arribação. Enfim, nem sei se concordo com tudo que escrevi há quase 14 anos. Mas, em plena ressaca natalina, é melhor republicá-lo do que tentar uma nova reflexão. Feliz Natal! Ah, o título foi da redação da Folha, não concordo muito com ele...
20/02/94
Escolas cariocas viram cordão de turista
FERNANDO MOLICA
Da Sucusal do Rio
Talvez sem querer, Gilberto Gil forneceu régua e compasso para a discussão em torno da eventual presença excessiva nas escolas, em especial, na Mangueira, de pessoas de fora do mundo do samba. Ele foi ao ponto ao detectar o que chamou de "caráter devocional" do desfile e ao citar o aspecto ritualístico da manifestação.Este rito e esta devoção estão, como ele também citou, ligados à luta das comunidades onde as escolas foram geradas. Estas características é que definem os limites da expansão do desfile. As escolas podem fazer tudo, mas não podem perder a fonte que as alimenta e legitima. O fundamental é manter o desejo de uma comunidade em se fazer representar com dignidade.A Beija-Flor, a Mocidade e a Imperatriz - os melhores exemplos de escolas que desabrocharam a partir da atuação de bicheiros/patronos - já existiam muito antes de serem adotadas. Os bicheiros não criaram estas escolas de samba. Foram em busca delas para tentar absorver um pouco da legitimidade que expressavam.Alguns bicheiros, como "Capitão Guimarães", foram menos sutis e acabaram rejeitados. Guimarães entupiu a Vila Isabel de dinheiro, mas acabou perdendo o poder na escola, campeã em 88 já sem a incômoda presença do patrono. Assim como os bicheiros, as iniciativas que visam dar um suporte empresarial às escolas têm de saber respeitar seus limites. Não podem se arvorar em substituir os poderes acumulados ao longo de - no caso da Mangueira - quase 60 anos.Mesmo que as agremiações tenham crescido e transcendido os limites de suas comunidades originais, a presença majoritária no desfile de pessoas a elas ligadas é fundamental para manter este elo que garante a sobrevivência da agremiação. Os bicheiros mais esclarecidos sabem disto: tanto que, para garantir um bom padrão de desfile e manter sua popularidade passaram, cada vez mais, a investir na compra de fantasias para os componentes que não teriam como adquirí-las - os antigos integantes das escolas estavam engrossando apenas uma ala, a "da força", eufemismo que caracteriza os empurradores de carros alegóricos.Uma escola perde sua função se não for mais vista como representante daqueles que a construíram e sim como um play-ground de aluguel ao alcance de quem tenha dinheiro para comprar uma fantasia. Escolas que são, não sobrevivem com um número excessivo de alunos que comparece apenas na festa de formatura com um diploma comprado nas mãos exibindo o ar bobo de quem enche a boca para dizer que é Mangueira ou Portela, mas que sobe ao morro apenas na condição de sequestrado.O ritual do desfile se completa com a presença, entre o público, de pessoas que cresceram aprendendo a gostar daquele espetáculo e que não tem vergonha de ouvir samba fora do carnaval. Fruto do crescimento e institucionalização dos desfiles, o sambódromo não pode ser um gueto para cariocas, mas, ao contrário do que afirmou o presidente da Riotur, José Eduardo Guinle, não foi feito principalmente para os turistas. Gil falou em devoção e ritual. As religiões criaram, ao longo de milênios, cerimônias bélissimas que atraem e fascinam o mais renitente ateu. Estas religiões, porém, morreriam se transformadas em macumba para turista. Elas precisam de fiéis que não apenas vejam, mas que compartilhem seu ritual.
25 de dezembro de 2007
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