27 de março de 2008

Bom dia para mudar

Caríssimas, caríssimos.
Foi um prazer recebê-los. Mas agora estou de casa nova. Apareçam por lá: além do blog, há um site sobre meus livros.
O arquivo do blog antigo continuará por aqui.

Abraços,

Molica

O novo endereço é http://www.fernandomolica.com.br/

Lançamento: "O ponto da partida" - 16/4, livraria DaConde


26 de março de 2008

Capa



Não resisto: aí vai a capa do meu novo livro, "O ponto da partida". A capa é da ótima Mariana Newlands. O livro começará a ser distribuído no início de abril: o lançamento será no próximo dia 16, na Livraria DaConde, no Leblon.

24 de março de 2008

Vá lá


"Não estou lá", o filme sobre a(s) vida(s) de Bob Dylan é imperdível: pra quem é fã do cara e/ou gosta de cinema. Acho quase impossível alguém gostar mais ou menos do longa: é pra aplaudir de pé ou pra sair correndo da sala. Eu fiquei com a primeira opção, dando vivas à ousadia do diretor - Todd Haynes -, que foi tão radical quanto Dylan. Ele sacou que a história do cantor não é linear, seria difícil contá-la da maneira tradicional. Então, dividiu a vida de Dylan em vários pedaços e delegou a tarefa de interpretá-los a seis atores (um deles, uma atriz, a espetacular Cate Blanchett). Do mosaico, de uma montagem aparentemente - e só aparentemente - caótica, surge a figura multifacetada do cantor. De quebra, tem talvez a melhor cena de sexo dos últimos anos. Cena que frustrará voyeurs: "Pô, não mostra nada!", reclamarão. Pois: não mostra, mas revela.

23 de março de 2008

A língua de George 2

Um amigo, rápido no pensamento e no teclado, fez uma observação importante (ver comentário no post anterior). Nem todo mundo que tem/porta/vive o/com o HIV tem a doença aids. Nesse caso, ele argumenta com razão, não é absurdo dizer que a pessoa "vive com o HIV" - ou seja a pessoa não é doente, apenas tem/porta um vírus que pode causá-la. OK, mas existe também a expressão "vivendo com HIV/Aids" - que pressupõe a existência da doença. Não se diz que a pessoa "tem Aids". Mas, ao mesmo tempo, ninguém diz que fulano "vive com câncer", mas que ele "tem câncer". Como também é mais comum se dizer que a pessoa é diabética ou tem diabetes.
Cada um que escolha a melhor forma de nominar sua condição de vida: a aids trouxe, além da doença, uma série de preconceitos que ainda precisam ser combatidos. A minha dúvida é se o recurso a palavras supostamente menos agressivas também não contribui para - num efeito oposto ao desejado - aumentar o preconceito. E, um último comentário: acho redundante falar que a pessoa está "vivendo com HIV/Aids" - afinal, ela está viva.

A língua de George

A onda do politicamente correto tem lá seu valor: lançou um alerta sobre palavras e expressões que, além de definir algo, serviam para expor, alimentar e manter preconceitos. É bom ver, por exemplo, que verbos como "judiar" praticamente não são mais utilizados.
Mas o problema é quando a luta contra o estigma serve apenas para escamotear um problema - é como se a simples mudança do nome do problema fosse capaz de resolvê-lo. E aí, tome de eufemismos. Até entendo a luta contra a palavra "lepra" e a busca de sua substituição por hanseníase: afinal, a palavra vem carregada de um peso maldito desde, pelo menos, os textos bíblicos.
Compreendo também a importância de se evitar o termo "aidético", que chegou a ser utilizado no início da epidemia. Ter aids - ser, portanto, "aidético" - significava que o sujeito ia morrer logo ali adiante. Surgiu então a fórmula "portador do HIV", que logo caiu em desuso - é meio esquisito mesmo o sujeito portar um vírus.
Hoje, o correto é dizer que fulano "vive com HIV" - continuo achando estranho. As pessoas podem ter dengue, malária, câncer, cirrose. Mas não podem ter aids - elas vivem com o HIV.
A doença é séria demais para permitir brincadeiras em torno do "vivem com", mas, insisto: até que ponto a expressão eufemística não ajuda a alimentar o preconceito? O Cony volta e meia lembra que, nos anos 50, não se publicava a palavra câncer: a pessoa morria vítima de uma "insidiosa moléstia". Será que isso ajudava na busca do tratamento da doença? Tenho certeza que não.
Saindo das doenças: tornou-se meio moda evitar a palavra "favela" - o mais bonitinho seria falar "comunidade". Bem, condomínios ricos também podem, tecnicamente, ser chamados de comunidade. No caso de "comunidades pobres", não importa que as pessoas morem em péssimas condições, que seus filhos brinquem ao lado de valas negras, que convivam com bandidos armados - o problema é não falar a palavra favela. Eis aí uma ótima saída para as autoridades: dizer que em sua cidade não há mais favelas, mas "comunidades".
A palavra prostituta também saiu de moda: fala-se em profissioais do sexo ou em garotas de programa. Qual a razão disso? Diminuir o preconceito? Talvez. Mas, na prática, isso só revela a hipocrisia de quem prefere varrer problemas para debaixo dos tapetes. No caso, uma sociedade que, pelo jeito, começa a se orgulhar de exportar esse tipo de mão(ôps!)-de-obra qualificada. Não exportamos prostitutas, mas profissionais do sexo. É como não falar em recessão, mas em "crescimento negativo". Isso tudo cheira a aplicação da tal da "novilíngua", a citada pelo George Orwell em seu assustador "1984".

20 de março de 2008

Livros de chuteiras

Som na caixa! Sabe aquela musiquinha que tocava nas transmissões do Canal 100 - a "Na cadência do samba", de Luiz Bandeira, mais conhecida como "Que bonito é..."? Pois. Finja que ela está tocando, ouça o som da torcida e aplauda a entrada em campo dos 16 participantes da segunda edição da Copa de Literatura Brasileira:

Que bonito é
Ver um samba no terreiro
Assistir a um batuqueiro
Numa roda improvisar


Organizada pelo cartola Lucas Murtinho, a competição, bem interessante, é inspirada no Tounament of Books, criado pela revista eletrônica americana The Morning News em parceria com a livraria Powell’s. Em suma: 16 livros disputam a Copa em quatro rodadas. Na primeira, cada participante enfrenta um outro: o encarregado de apitar o jogo - um crítico, um blogueiro interessado em literatura - dá o resultado. Ele é obrigado a dizer por que escolheu A e não B. O mata-mata prossegue até a grande final, quando todos os árbitros podem votar no campeão.
Acompanhei os jogos do ano passado - e foram muito legais. Obrigados a escolher um vencedor, os jurados, de um modo geral, fizeram leituras detalhadas de cada livro. Qualidades e defeitos foram esmiuçados e apresentados em longas resenhas. Ao contrário do que ocorre nos demais prêmios literários, nesta Copa os resultados têm que ser justificados. Claro que não dá pra concordar com tudo, houve impedimentos mal marcados, pênaltis duvidosos, cartões vermelhos desnecessários, casos de doping não comprovados. Mas, pelo menos, dá pra saber por que A derrotou B.
A primeira edição da Copa - vencida por "Música perdida", de Luiz Antonio Assis Brasil (LP&M) - injetou um pouco de ânimo neste certo marasmo da literatura brasileira contemporânea. Alguns autores reclamaram do juiz, vaias pipocaram das arquibancadas, ocorreram zebras: aqui e ali, o tempo ameaçou fechar. Ou seja, durante a Copa tivemos a oportunidade de vivenciar algo raro, uma discussão ao mesmo tempo técnica e emocional sobre a literatura produzida hoje no país. Não se falava em outra coisa nos melhores botequins virtuais. E isso não é pouco - renova ânimos, desperta paixões, gera esperanças.
Mais detalhes, lá no estádio oficial do evento, o Maraca (ou Engenhão) da literatura brasileira: http://copadeliteratura.com (melhor copiar o endereço e jogar no navegador - não consigo, sou um incompetente, eu sei, criar um link que funcione). O primeiro jogo é O amor não tem bons sentimentos (Raimundo Carrero, Iluminuras) x O sol se põe em São Paulo (Bernardo Carvalho, Companhia das Letras). O jurado é o Rodrigo Gurgel.

18 de março de 2008

A camisa do quase

Já sei, já sei. Um sujeito que se diz sério não deveria escrever uma baboseira como a que vem abaixo - pelo menos, não deveria escrever baboseiras conscientemente. Mas é que acabei de ler uma notícia no site do Globo Esporte sobre a decisão do Botafogo de não jogar os clássicos com o uniforme listrado - veja aqui. Boa notícia. Há duas semanas mandei para uma amiga, que trabalha no Botafogo, uma observação: que tal trocar o modelo da nossa camisa tradicional? Não sei se ela teve coragem de levar minha observação adiante, mas repito aqui meus argumentos. O problema é simples: o atual figuro subverte a tradição da camisa listrada. Algumas listras não cumprem seu destino retilíneo e, lá pertinho do calção, quase no limite da camisa, dão a volta, fazem uma curva, retornam ao ponto de partida, traem sua vocação. Veja aqui, ó:



Sei não, mas isso tem muito a ver com a trajetória do time em 2007 - e mesmo, neste início de 2008. No ano passado, quase conquistamos o título carioca (fomos roubados, mas perdemos o campeonato) e a Copa do Brasil (igualmente furtados): íamos bem no Brasileiro, tropeçamos na Sul-Americana, e desandamos de vez. A vaga na Libertadores também ficou no quase. Disputamos os jogos decisivos com a camisa que tem listras que voltam ao ponto de partida. Usamos o mesmo uniforme titular na decisão da Taça GB deste ano. Deu no que deu: com a camisa em que as listras quase chegam ao fim, ficamos no quase. Já no domingo passado, com a camisa preta, derrubamos um tabu.
Claro que vitórias e derrotas não têm a ver com camisas - só um idiota supersticioso pensaria isso. Mas, sei lá, tá regulando, né? Vamos então de preta ou de branca - enquanto não ajeitarmos a belíssima preta-e-branca. E, já que falei de camisas: tá na hora de proibir o Castillo de usar aquela que estampa uma estrela preta. Além de feia, de lembrar aquele fanfarrão frangueiro do ano passado (toc, toc, toc - que seja feliz em sua nova granja), a camisa briga com nosso símbolo: nossa estrela, a que nos conduz, é branca, caramba.

A temperatura de um diploma

O Brasil sempre nos surpreende - nem sempre para melhor, claro. Mas é quase sempre surpreendente. Na sexta passada eu tentei fazer aqui uma ligação entre a vida falsa desejada pelo menino que pediu um par de "chinelos de marca" - para tentar fingir que era rico - com a má qualidade da educação pública no país. Uma educação que fornecia diplomas verdadeiros, mas que se revelavam falsos - atestavam um conhecimento não-adquirido pela maioria de seus possuidores.
Enfim, tentei ligar o Estado que distribui uma falsidade com o menino que - de tanto receber expectativas falsas - assume que só poderá sair da pobreza de maneira ilusória e temporária, pela posse e uso de um bem (um par de chinelos...) que considera símbolo de alguma riqueza.
Depois é que notei que não precisava ter tentado elaborar tanto: naquele mesmo dia, a Polícia Federal desarticulou uma quadrilha especializada em vender diplomas falsos. Diplomas de instituições sérias que eram comercializados por um bom preço. Se os caras vendiam é porque tinha gente comprando - um diplominha que poderia garantir uma promoção, um empreguinho melhor. Para os clientes, trata-se de um crime menor: duvido que ocultassem isso de amigos, parentes ou vizinhos. Seriam capazes até de enquadrar e pendurar o papel na sala de casa.
Enfim, a escolha é, portanto, do cliente: o que é melhor? Diploma quente de uma escola fria ou diploma frio de escola/universidade quente?

É escandaloso comprar diplomas falsos? E o que dizer das centenas (milhares? É só procurar no Google) de pessoas que elaboram e vendem trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses? E o que dizer dos que compram os tais produtos?

16 de março de 2008

"De cabeça baixa"


Costumo dizer, brincando, que escrever um livro é até fácil (não é não, claro), o complicado, o difícil, é lançá-lo. É definir local e forma de lançamento, preparar a lista de convidados (e tome de catar e transcrever endereços completos - com CEP! - de amigos, parentes, conhecidos), combinar com a editora como fazer a divulgação. Depois, ainda torcer para que o livro, mais um na atual incrível avalanche de lançamentos, não seja apenas mais um. Que ele consiga colocar o pescoço pra fora, seja lido, comentado e, se possível, elogiado.
Isso tudo num mercado voraz, de muitas editoras, poucas livrarias e raros leitores. Os livros deixam de ser novidade em muito pouco tempo, são submetidos a um revezamento quase cruel nos espaços mais nobres nas livrarias. Ficam ali expostos por duas, três semanas - e, se não venderem bem, passam rapidinho para o anominato das estantes. Isso, muitas vezes antes de a primeira resenha ser publicada.
Enfim, na luta, vale buscar formas alternativas de se buscar alguma divulgação para algo tão particular quanto um livro. E o novo amigo Flávio Izhaki, conseguiu armar um esquema bem interessante para trabalhar seu primeiro romance, "De cabeça baixa" (editora Guarda-chuva). Fez um blog só para o livro - blog - e ainda produziu um trailer (isso mesmo, como no caso de filmes). O trailer, bem legal, pode ser visto lá no blog.
O engraçado é que o Flávio, além de cuidar do seu próprio rebento, ainda tem que ninar livros alheios, como o meu próximo - ele trabalha na editora Record. Em comum, temos a mesma capista, a ótima Mariana Newlands. Ah, o livro do Flávio será lançado no próximo dia 25, na Argumento, aqui no Rio.

14 de março de 2008

Chinelos de marca

Maria Augusta conta que, durante a produção, um menino lhe pediu R$ 50 para comprar um "chinelo de marca". "Perguntei por que queria tanto aquele, e ele retrucou: 'A gente não tem nada, vive numa favela, nem isso pode ter?'. Há, portanto, a percepção da injustiça social. Só que ao mesmo tempo eles compram a imagem do outro, o sonho que jamais poderão realizar", salienta.

O trecho aí de cima foi tirado de matéria do amigo Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br) sobre o documentário "Juízo", de Maria Augusta Ramos. Bem legal a reflexão que ela faz - meninos pobres tentam "comprar a imagem do outro". Sabem que não serão como eles, como os ricos, os maurícios. Mas podem fingir que são um deles.
O texto no blog do Moutinho foi colocado no mesmo dia em que a Folha e o Estadão abriram espaços para mostrar a incompetência do sistema público de ensino de São Paulo, o estado mais rico da federação. Os números são assustadores, reforçam o que se sabia: a maioria daquelas escolas cumpre mais ou menos o papel do tal "chinelo de marca". Elas apenas vendem a imagem de que são escolas: o diploma de ensino médio de uma delas atesta o mesmo que um outro, de uma das escolas da elite paulista. Na prática sabemos que não é assim.
Mas o que importa é a aparência: um diploma que finge ser um diploma igual ao diploma dos ricos. Um fingimento que rouba sonhos, impede que a esperança prospere. Pra que estudar se este estudo não vai permitir um acesso a uma vida melhor? Então, vamos todos fingir: o Estado dá uma educação fingida, que é coroada com um diploma que não é diploma. Algo que não vai permitir ao formando elementos para tentar ser um "outro". Que ele se contente então em fingir que é um outro, com o tal par de chinelos de marca. Isso, numa sociedade consumista como a nossa, tende a não dar certo. Já não está dando, né?

Lembrei de uma outra história, ocorrida na casa de um outro amigo: uma empregada doméstica tentava convencer o filho adolescente a desistir de um pedido, um par de tênis de R$ 300/400. Lembrou que os filhos de seus patrões usavam tênis bem mais baratos, de R$ 100/120. O garoto respondeu algo como: "Pois é, mãe. Mas ninguém vai achar que os filhos do seu patrão são pobres, eles não precisam dos tênis caros."

12 de março de 2008

"Juno" - onde os homens não têm vez



"Juno" é um filme bonito, sensível, emocionante. O roteiro, vencedor do Oscar, foi escrito por uma mulher (Diablo Cody), o que ajuda a entender a delicada abordagem do tema e, principalmente, o ponto de vista feminino da história - uma jovem, Juno (Ellen Page), de 16 anos, que engravida e decide entregar o bebê para adoção. Os diálogos são inteligentes, ágeis; as soluções dramáticas fogem do previsível. Tudo colabora para enaltecer a lógica de Juno, uma garota encantadora, inteligente, decidida, nada óbvia. Até aí, ótimo. Se eu fosse adolescente seria capaz de me apaixonar por aquela menina.
Mas, horas depois de ver o filme, saquei algo meio incômodo. Para enaltecer Juno, o filme arrasa com os homens. Desde o início fica claro que a transa com um colega de turma que originou a gravidez foi iniciativa de Juno; é ela que decide abortar - vai sozinha para a clínica -, é ela que desiste de interromper a gravidez. É a super e bem-resolvida Juno que decide entregar o bebê para adoção, é ela que toma todas as decisões - inclusive as relacionadas com uma eventual retomada do namoro com Bleeker (Michael Cera). Este, não apita nada, não reclama de nenhuma decisão da moça, não demonstra o menor interesse no futuro do filho que, apesar de estar provisoriamente abrigado no corpo de Juno, é também dele: contribuiu, afinal, com 50% daquela empreitada. O lourinho boa gente só sabe correr, comer balinhas e, claro, por uma única vez, a Juno. Parece até que mandou bem, mas esta é outra história.
Mark (Jason Bateman), o homem do casal escolhido para ficar com o bebê, revela-se outro portador de grandes nádegas. Um sujeito dominado pela mulher que, ao conhecer Juno, tem uma espécie de recaída adolescente e passa a lamentar a vida que deixou de ter. E, ainda por cima, vacila num momento-chave do filme, demonstrando insegurança na hora de dar um grande passo do casal. A mulher dele, Vanessa (Jennifer Garner) revela-se mais, digamos, adulta. Já o pai da Juno é um bom sujeito, um cara que sabe segurar a onda da filha, cumpre o papel esperado na trama do filme. Em "Juno", homem legal é o que não passa de um coadjuvante, "escada" para as aventuras do personagem principal. Como o pai e, de certa forma, Bleeker.
No fim das contas, lembrei ter lido há pouco tempo que cientistas britânicos afirmaram ter criado espermatozóides a partir de células-tronco da medula óssea feminina. Ou seja, se o negócio vingar, nem pra isso serviremos mais. Pelo visto - e, moças, por favor, compreendam o machismo final apenas como um uivo ressentido de quem se vê meio sem perspectivas no futuro - só serviremos mesmo para manobrar carros. Isso, enquanto não vierem aqueles que têm movimentos nas rodas traseiras, que transformam o estacionar numa brincadeira de crianças.

10 de março de 2008

Páginas amarelas

O Globo, 20/10/1991

O balão de quem manda


FERNANDO MOLlCA



Passava das 23 horas do último domingo quando começou o espocar de fogos e tiros. No céu, o motivo da festa: um balão que trazia dependurada a inscrição "Da 12". Da 12, Gilson da 12, varejista de drogas, dono dos morros do Andaraí e Divinéia, morto pela Polícia Federal há dois meses. Morreu na Baixada, foi velado no morro do Andaraf, na quadra do bloco Flor da Mina. Os jornalistas - a exemplo do que ocorre em velórios de algumas celebridades - não puderam entrar.
O comércio da área foi obrigado a fechar, numa manifestação de luto compulsório. No dia seguinte, outra manifestação de poder: crianças do morro foram colocadas à frente do cortejo para impedir fotos dos sócios de Gilson da 12. Não havia como evitar a presença de fotógrafos no enterro.
Tento fotografar o balão que leva a homenagem. Depois, corro para a câmara de vídeo, que, emprestada, passava uns dias lá em casa. O balão já está muito longe. Vou para a TV conferir o resultado. A fita mostra apenas um OVNI, um objeto voador não-identificado, cercado de riscos coloridos. Mas ficaram gravados os fogos, os tiros e os clarões que continuavam a surgir por entre as luzes do morro.
As imagens lembram outras, igualmente precárias, meio indefinidas e assustadoras. Aquelas, dos mísseis que cruzavam os céus do Iraque, Israel e Arábia Saudita durante a Guerra do Golfo. Novos estampidos fazem contraponto à minha CNN privé. Aqui, â guerra continua. Já estou, de novo, pra cá de Bagdá. De volta ao Grajaú.
Entro no quarto de meus filhos e, como dissera pela manhã Lisa Simpson (aquela de "Os Simpsons"), sinto um "arrepio ético". E se, o mais velho, de 4 anos, tivesse acordado e me perguntado o motivo da barulheira? Será que eu diria um "nada não, só uma festa para um bandido que morava aqui perto"? Ou será que teria mentido (algo como "mais uma festa pelo Dia das Crianças")? Bem, ele não acordou. As varandas e janelas que me cercam já retornaram para seus domingos. Quem não decifrou o enigma do "Da 12" deve estar até aliviado - foi só um balão, nada comparável com os tiroteios que costumam varar madrugadas.
Melhor também para os do morro - não houve troca de tiros, apenas uma barulheira danada que durou uns dez minutos. As crianças de lá devem ter acordado - as de 4 anos ou mais certamente já sabem quem foi Gilson, conviveram com ele. Muitas podem até ter trabalhado para ele. Todas devem ter ficado fascinadas com o espetáculo do balão.
Apesar das deficiências do ensino brasileiro, elas não devem ter tido nenhuma dificuldade para decifrar o "Da 12".
Essas crianças também devem saber quem é o número da vez. A numerologia de subsistência deve ser aprendida com presteza: ao contrário dos grandes atacadistas das drogas, estes, digamos, franqueados, costumam ter vida curta. Gilson morreu com 27 anos.
O território de Gilson da 12 era por ele mesmo chamado de "Cidade sem lei". A expressão revela orgulho, mas, ao mesmo tempo, apresenta um erro no diagnóstico. Existem leis por lá. Só que são outras, diferentes das que, pelo menos em tese, vigoram fora dos limites daqueles morros. Leis criadas sem necessidade de uma Constituinte, bastante claras e duradouras: resistem melhor à mudança de xerifes que as leis brasileiras às trocas de presidentes. Não é preciso sequer uma emendinha para modificar algo tão simples como um "quem manda aqui sou eu".
Enfim, foi só o barulho. Afronta por afronta, soltar balões também é ilegal. Mesmo que não homenageiem traficantes. Nada de muito grave, de anormal. Como os seqüestros, os assassinatos, os roubos de carros, cabelos, tênis, mochilas e cestas básicas. Como o extermínio de crianças e jovens. Há anos que dormimos com barulhos como esses.

Resposta

Tu és time de fanfarrão,
Ganha metendo a mão.
Que papelão...
Eu nunca me calarei,
Onde estiver gritarei,
Pega ladrão.