30 de dezembro de 2007

Páginas amarelas (4) O ano da bossa

O texto que está abaixo foi publicado no dia 19/12/90, na Folha. Era uma crônica sobre o show ocorrido dois dias antes, no Scala 2, no Rio, em homenagem ao cantor Lúcio Alves - na época, muito doente. A arrecadação do espetáculo seria para pagar seu tratamento. O show foi espetacular, apesar da previsível ausência de João Gilberto. Republico o texto para fechar 2007 e abrir 2008, quando serão comemorados os 50 anos da bossa-nova.
Mas o mesmo mesmo é clicar no link http://www.youtube.com/watch?v=DmV0TcTNJ3o , ele leva ao Youtube, a uma interpretação espetacular de "Garota de Ipanema" feita por Tom & João.
Feliz Ano-Novo, que ele seja compatível com o espírito da bossa-nova. Sem saudosismo, claro, mas com esperança de tempos mais delicados. Um ano cheio de bossa.


Músicos fazem show saudosista no espírito bossa-nova

Fernando Molica
Da sucursal do Rio

Bem que Agnaldo Timóteo, com a sutileza de um porta-aviões nuclear, tentou arrebentar o delicado cais destinado aos barquinhos da bossa-nova. O diretor musical do show, o pianista Alberto Chimelli, também ameaçou acinzentar com uma tempestade “fusion” o céu azul das canções regidas pela trindade sol-sal-sul. Mas Tom Jobom, Os cariocas, Tito Madi, Sebastião Tapajós, Doris Monteiro, Miltinho, Caetano e Leny Andrade souberam tomar o leme e fazer o show em benefício de Lúcio Alves navegar em águas compatíveis com o estilo do homenageado.
Claro, o saudosismo foi inevitável, Tito Madi chegou a cantar uma música que fala de um Rio “que saiu dançando amor”; Caetano Veloso pescou “Fim de semana em Paquetá” – exemplos de uma cidade cuja sutileza foi fundamental para gerar um movimento como a bossa-nova. O Rio hoje está mais para a voz peso-pesado de Agnaldo Timóteo e a decadência expressa nos espelhos e dourados do cenário do show, o Scala 2, no Leblon, zona sul do Rio.
A beleza das canções e a qualidade de seus intérpretes permitiram que o show não se restringisse a um exercício de arqueologia musical. Os acordes de Tom Jobim, a afinação de Tito Madi, a técnica de Tapajós, os audaciosos arranjos de Os Cariocas e os improvisos de Leny Andrade demonstraram, mais uma vez, que a bossa-nova driblou os riscos da velhice e se colocou na posição dos clássicos. Prova de sua vitalidade é que continua a influenciar muita gente no Brasil e o exterior – a atual fase acústica de Caetano, um dos mais ousados artistas contemporâneos, não deixa de ser resultado de uma visita a essa fonte bossa-novista. E é esta condição clássica que vai permitir que a bossa-nova exista mesmo depois deste discreto modismo nostálgico gerado pelo livro “Chega de saudade”, de Ruy Castro.
No show, a bossa-nova foi mais um referencial. Alguns dos artistas que se apresentaram começaram antes de João Gilberto, no final dos anos 50, revolucionar a música brasileira. Quase todos, porém, entraram no clima da bossa-nova. Até mesmo as piadas do apresentador Ivon Cury ajudaram a criar este ambiente meio maroto e elegante, cool, como se dizia há alguns poucos anos.
O, digamos, impacto da presença de Agnaldo Timóteo cantando “Por causa de você” foi neutralizado, em seguida, por Tom Jobim. Depois vieram Caetano, e Os Cariocas. Esses conseguiram injetar cheiro de mar até na paulistíssima “Sampa”. Ah, teve também Cauby Peixoto, que entrou cantando “Conceição” e fechou sua parte com “People”. Nada disto é bossa-nova, mas, depois de Agnaldo Timóteo, até que pareceu muito natural.