Um amigo, rápido no pensamento e no teclado, fez uma observação importante (ver comentário no post anterior). Nem todo mundo que tem/porta/vive o/com o HIV tem a doença aids. Nesse caso, ele argumenta com razão, não é absurdo dizer que a pessoa "vive com o HIV" - ou seja a pessoa não é doente, apenas tem/porta um vírus que pode causá-la. OK, mas existe também a expressão "vivendo com HIV/Aids" - que pressupõe a existência da doença. Não se diz que a pessoa "tem Aids". Mas, ao mesmo tempo, ninguém diz que fulano "vive com câncer", mas que ele "tem câncer". Como também é mais comum se dizer que a pessoa é diabética ou tem diabetes.
Cada um que escolha a melhor forma de nominar sua condição de vida: a aids trouxe, além da doença, uma série de preconceitos que ainda precisam ser combatidos. A minha dúvida é se o recurso a palavras supostamente menos agressivas também não contribui para - num efeito oposto ao desejado - aumentar o preconceito. E, um último comentário: acho redundante falar que a pessoa está "vivendo com HIV/Aids" - afinal, ela está viva.
23 de março de 2008
A língua de George
A onda do politicamente correto tem lá seu valor: lançou um alerta sobre palavras e expressões que, além de definir algo, serviam para expor, alimentar e manter preconceitos. É bom ver, por exemplo, que verbos como "judiar" praticamente não são mais utilizados.
Mas o problema é quando a luta contra o estigma serve apenas para escamotear um problema - é como se a simples mudança do nome do problema fosse capaz de resolvê-lo. E aí, tome de eufemismos. Até entendo a luta contra a palavra "lepra" e a busca de sua substituição por hanseníase: afinal, a palavra vem carregada de um peso maldito desde, pelo menos, os textos bíblicos.
Compreendo também a importância de se evitar o termo "aidético", que chegou a ser utilizado no início da epidemia. Ter aids - ser, portanto, "aidético" - significava que o sujeito ia morrer logo ali adiante. Surgiu então a fórmula "portador do HIV", que logo caiu em desuso - é meio esquisito mesmo o sujeito portar um vírus.
Hoje, o correto é dizer que fulano "vive com HIV" - continuo achando estranho. As pessoas podem ter dengue, malária, câncer, cirrose. Mas não podem ter aids - elas vivem com o HIV.
A doença é séria demais para permitir brincadeiras em torno do "vivem com", mas, insisto: até que ponto a expressão eufemística não ajuda a alimentar o preconceito? O Cony volta e meia lembra que, nos anos 50, não se publicava a palavra câncer: a pessoa morria vítima de uma "insidiosa moléstia". Será que isso ajudava na busca do tratamento da doença? Tenho certeza que não.
Saindo das doenças: tornou-se meio moda evitar a palavra "favela" - o mais bonitinho seria falar "comunidade". Bem, condomínios ricos também podem, tecnicamente, ser chamados de comunidade. No caso de "comunidades pobres", não importa que as pessoas morem em péssimas condições, que seus filhos brinquem ao lado de valas negras, que convivam com bandidos armados - o problema é não falar a palavra favela. Eis aí uma ótima saída para as autoridades: dizer que em sua cidade não há mais favelas, mas "comunidades".
A palavra prostituta também saiu de moda: fala-se em profissioais do sexo ou em garotas de programa. Qual a razão disso? Diminuir o preconceito? Talvez. Mas, na prática, isso só revela a hipocrisia de quem prefere varrer problemas para debaixo dos tapetes. No caso, uma sociedade que, pelo jeito, começa a se orgulhar de exportar esse tipo de mão(ôps!)-de-obra qualificada. Não exportamos prostitutas, mas profissionais do sexo. É como não falar em recessão, mas em "crescimento negativo". Isso tudo cheira a aplicação da tal da "novilíngua", a citada pelo George Orwell em seu assustador "1984".
Mas o problema é quando a luta contra o estigma serve apenas para escamotear um problema - é como se a simples mudança do nome do problema fosse capaz de resolvê-lo. E aí, tome de eufemismos. Até entendo a luta contra a palavra "lepra" e a busca de sua substituição por hanseníase: afinal, a palavra vem carregada de um peso maldito desde, pelo menos, os textos bíblicos.
Compreendo também a importância de se evitar o termo "aidético", que chegou a ser utilizado no início da epidemia. Ter aids - ser, portanto, "aidético" - significava que o sujeito ia morrer logo ali adiante. Surgiu então a fórmula "portador do HIV", que logo caiu em desuso - é meio esquisito mesmo o sujeito portar um vírus.
Hoje, o correto é dizer que fulano "vive com HIV" - continuo achando estranho. As pessoas podem ter dengue, malária, câncer, cirrose. Mas não podem ter aids - elas vivem com o HIV.
A doença é séria demais para permitir brincadeiras em torno do "vivem com", mas, insisto: até que ponto a expressão eufemística não ajuda a alimentar o preconceito? O Cony volta e meia lembra que, nos anos 50, não se publicava a palavra câncer: a pessoa morria vítima de uma "insidiosa moléstia". Será que isso ajudava na busca do tratamento da doença? Tenho certeza que não.
Saindo das doenças: tornou-se meio moda evitar a palavra "favela" - o mais bonitinho seria falar "comunidade". Bem, condomínios ricos também podem, tecnicamente, ser chamados de comunidade. No caso de "comunidades pobres", não importa que as pessoas morem em péssimas condições, que seus filhos brinquem ao lado de valas negras, que convivam com bandidos armados - o problema é não falar a palavra favela. Eis aí uma ótima saída para as autoridades: dizer que em sua cidade não há mais favelas, mas "comunidades".
A palavra prostituta também saiu de moda: fala-se em profissioais do sexo ou em garotas de programa. Qual a razão disso? Diminuir o preconceito? Talvez. Mas, na prática, isso só revela a hipocrisia de quem prefere varrer problemas para debaixo dos tapetes. No caso, uma sociedade que, pelo jeito, começa a se orgulhar de exportar esse tipo de mão(ôps!)-de-obra qualificada. Não exportamos prostitutas, mas profissionais do sexo. É como não falar em recessão, mas em "crescimento negativo". Isso tudo cheira a aplicação da tal da "novilíngua", a citada pelo George Orwell em seu assustador "1984".
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