22 de fevereiro de 2008

Páginas amarelas/ No balanço de Cuba (1)

Estive em Cuba duas vezes, em 1985 e em 1994. O texto abaixo foi publicado em 17/11/94 no caderno de turismo da Folha. Já está meio desatualizado, muita coisa mudou por lá: até o presidente, quem diria? Mas acho que dá para dar um panorama geral e despretensioso sobre as contradições que já então se assanhavam pela ilha.

Bairro histórico lembra antigo pelourinho

Do enviado especial a Cuba

Cuba mudou mito. De singular tentativa socialista, transformou-se em uma ilha plural. Há o país oficial e o paralelo, o do peso e o do dólar, o do cubano e o do turista. O melhor desta esquizofrenia político-social-econômica é que se pode visitar ambos ou apenas um, ver o que restou do socialismo ou simplesmente ir à praia.
Cuba é possivelmente o único país do mundo em que funcionárias públicas trabalham com as nádegas de fora. Não se trata de mais uma tara daqueles comunistas barbudos. As tais funcionárias são bailarinas de algumas das mais animadas repartições do mundo: os cabarés cubanos.
Em uma quase metáfora das dificuldades do país, os há até poucos anos imensos biquínis revelam hoje escassez de tecido e exaltação de ousadia e liberalização.
Fora o socialismo, as duas Cubas - a do turista e a do cubano - continuam muito parecidas com a nossa Salvador: na ilha não há a miséria baiana. Em compensação, as construções do "novo" Pelourinho dão um banho nos mal conservados casarões e palácios de Havana Velha, bairro histórico da capital cubana.
Lá, como aqui, Iemanjá é Iemanjá. Ogum é Ogum etc. Herança iorubá: nação africana de onde foram levados escravos que serviram às então colônias espanhola e portuguesa. Cubano é parecido com baiano até no desrespeito aos horários - e o pior é que lá todo mundo é funcionário público.
A fronteira das duas Cubas é marcada por uma linha imaginária formada por notas de dólares. Na ilha há os com-dólares e os sem-dólares. Os primeiros podem até dizer que o paraíso não é algo assim tão distante e não fica necessariamente a menos de 200 km ao norte, na Flórida.
Já os sem-dólares são obrigados a viver com o peso, moeda que, se ainda oferece alguma garantia contra o inferno da fome, serve, no máximo, para comprar um lugar nas arquibancadas do purgatório.
Para o turista não há opção: ele está entre os que têm dólares. O peso fica ainda mais leve para o estrangeiro e tem apenas a discutível utilidade de servir como recordação.
Com algum jeito, dá até para se sentir um milionário norte-americano em Copacabana. Isto, até na desvantagem de ser assediado por: 1) meninos (e velhos) pedindo dinheiro (dólar, claro, Fidel Castro já disse que "o real não cheira bem"); 2) funcionários públicos oferecendo rum e charutos a preços que, garantem, ser de ocasião; 3) dezenas de pessoas querendo saber detalhes dos próximos capítulos da novela "Felicidade".
A parte pobre do país, que inclui Havana Velha, é uma mistura de subúrbio carioca com Pelourinho pré-reforma. Apesar da pobreza, do mau estado de conservação dos prédios, dos pedintes, dos traficantes de rum e dos noveleiros, ir a Havana Velha é tão fundamental quanto beber mojitos ou daiquiris, drinques feitos com rum.
Para quem saiu do Brasil disposto a ficar distante de pobres e novelas, o melhor é correr para Varadero, a 140 km da capital, e ficar de molho no mar com águas a 25ºC.