24 de dezembro de 2007

Páginas amarelas (2) - Tom & João

Esta reportagem, que abre no blog as homenagens aos 50 anos da bossa-nova, tem uma história curiosa. Em dezembro de 1992, a Brahma promoveu no Teatro Municipal do Rio um reencontro entre João Gilberto e Tom Jobim: havia muito tempo que eles não dividiam o mesmo palco. A participação de Tom no show de João seria o ponto alto do espetáculo e sequer chegou a ser divulgada. Poucos dias antes, a Folha de S.Paulo recebeu uma proposta interessante: dois de seus repórteres seriam colocados nos bastidores do show. Um seria o garçom do João Gilberto no Municipal; o outro assistiria, sem se identificar como jornalista, ao ensaio entre os dois grandes da bossa-nova. Fiquei com medo de derrubar café-com-leite no João, a condição de fã do baiano potencializaria minha já preocupante condição de desastrado. O Plínio Fraga assumiu o cargo de garçom e eu virei aspone de um sujeito que teria acesso ao ensaio, que ocorreria numa suíte do Caesar Park de Ipanema. No dia 09/12/92, a Folha publicou o texto abaixo:

Apresentação teve ´ensaio secreto´no domingo

Cantores se encontraram no Caesar Park do Rio


Chega de saudade: depois de muitos anos - seis ou 15, as versões são conflitantes - João Gilberto e Tom Jobim voltaram a se encontrar no domingo. Nada de abraços e carinhos sem ter fim: sorrisos, um aperto de mão, um arrastado "Oi, Tom". Na véspera, João e Tom haviam conversado por uma hora e meia por telefone.
O encontro foi às 18h30 na suíte do 12o. andar do hotel Caesar Park, em Ipanema, zona sul, onde João passou a semana que antecedeu ao show do Municipal. Acompanhado da mulher, Ana, Tom chegou às 18h20. João havia saído.
Ao chegar à suíte, Tom se decepciona ao ver o piano elétrico reservado para o ensaio. Calça branca, camisa larga branca e amarela, chapéu de palha, balança a cabeça ao tocar alguns acordes. "Não dá", diz. Entre uma nota e outra, desiste de acender o charuto. "O João vai ficar zangado", justifica.
Nisto, chega João. Cumprimenta Tom e Ana, lamenta a quebra da alça da caixa de seu violão e reclama do ar-condicionado. Preocupado com o show, João não dormia havia três dias - preocupação semelhante o fizera pedir, por três vezes, o adiamento da apresentação de anteontem, que estava prevista para agosto.
Ainda na suíte, João canta "Chega de Saudade", que viria a abrir o bis no show. Decepcionado com o piano, Tom sugere que o ensaio seja em sua casa, o que é aceito por João. À espera do elevador, um silêncio constrangedor. Tom quebra o gelo: elogia a participação de João no comercial da Brahma e critica a "world music". João concorda com um muxoxo.
No hall, Tom caminha na frente, João, de paletó cinza e tênis brancos, vai mais atrás, agarrado ao violão: passo tímido, quase caipira, pés um pouco virados para dentro. Atravessam o vidro da portaria do hotel e encaram, um ao lado do outro, a claridade de Ipanema. Vistos de costas, são personagens de uma não-realizada foto histórica: as duas silhuetas em contraluz emolduradas pelo mar de Ipanema.
O ensaio durou três horas. Anteontem, às 20h2o, eles voltaram a ensaiar no Municipal. Já havia uma certa cumplicidade. Tom cantava uma brincadeira com o nome do parceiro de palco: " Viva o João Gilberto/ Viva o João do Prado/Vivia o João Gilberto Pereira de Oliveira."
João estimulava Tom a improvisar mais em "Chega de Saudade": "Faça como quiser, Tom", dizia, sentado a seu lado, em uma ponta do banco do piano. Pode ter sido o reinício de uma bela e produtiva amizade.

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