Quem é do Rio sabe, ou deveria saber: Piedade é um subúrbio da Central, ou seja, é cortado pela linha férrea da antiga Central do Brasil. É que lá que fui criado, é de lá que vêm minhas memórias das festas de fim-de-ano. As noites de 24 e 31 de dezembro eram sempre passadas na vila onde moravam meus avós e onde, até hoje, vivem dois de meus tios.
Quando eu era criança, lá em Piedade, achava esquisitos os desejos de "bom Natal pra você". Repare: "bom Natal", e não "feliz Natal". Esta é expressão de anúncio de TV de cartões de boas festas; as pessoas, pelo menos em Piedade, desejavam um "bom Natal". É mais modesto e razoável: felicidade é algo mais amplo, difícil de classificar, de checar: será que este é um Natal feliz? Estou feliz agora? Não é simples responder. É bem mais fácil avaliar se aquela festa, a reunião familiar, está sendo boa ou não. Se a comida está boa, se os presentes são razoáveis.
E eu, na falta de algo melhor para fazer, conseguia implicar com aquele negócio de "bom Natal" pra cá e pra lá. Na minha cabeça - desde então já meio complicada, admito - fazia mais sentido direcionar os tais votos para o ano que estrearia dali a pouco do que reduzir a aposta para uma simples noite - a de 24 para 25. A relação custo-benefício era mais evidente: os bons tempos, se concretizados, se alastrariam por um ano inteiro, não apenas por algumas horas. Sim, poucas: pelo menos lá em Piedade, a celebração do Natal herdara das comemorações de Ano-Novo uma certa lógica da virada, o Natal era algo que ocorria entre as oito da noite do dia 24, quando íamos para a vila dos meus avós, e, no máximo, as duas da madrugada seguinte. Neste espaço de tempo, comíamos, bebíamos, abríamos presentes. Dia 25 era apenas uma conseqüência, uma suíte, para usar um jargão jornalístico: não dava pra achar muito especial um dia em que o almoço chegava em forma de peru frio desfiado, acompanhado de farofa gelada e maionese (por "maionese" entenda-se salada de batata afogada na maionese propriamente dita).
Também achava estranhas as manifestações de depressão que ocorriam naquele curto intervalo de tempo - eram mais concentradas, geralmente afluíam por volta da meia-noite. Hora em que batia em muita gente a sensação de que mais um ano fora perdido. O mea-culpa natalino explodia em choro, em pedidos de desculpa, em promessas de vou mudar, a senhora vai ver só. Não mudava, claro: no ano seguinte, o sujeito repetia a mesma cena. Esta é uma das imagens mais marcantes de meus Natais: era a noite em que, todo ano, a expectativa do Papai Noel era substituída pela certeza da performance de um sujeito meio bêbado que parecia incorporar o Ébrio de Vicente Celestino naquela vila suburbana. Desculpas pedidas, ele entrava numa espécie de hiato vital: era como se não vivesse aquela semana entre o Natal e o Ano-Novo. Ficaria como que na muda. Na festa do dia 24, ele pedira perdão pelas besteiras feitas a partir de 1o. de janeiro anterior; na vindoura, a do dia 31, se encheria de esperança para gritar que dali pra frente, tudo seria diferente. Não seria, claro, mas quem haveria de estragar a rendenção e os sonhos alheios? Caramba, estávamos no Natal, não dava pra cortar assim a certeza de quem imaginava amananhecer e constatar que seu sapatinho estaria cheio de doses cavalares de juízo.
21 de dezembro de 2007
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